sábado, março 07, 2009
MEU AVÔ E EU
O que sempre me encantou no romance Menino de engenho (1932) de José Lins do Rêgo foi a bonita relação entre avô, Zé Paulino e o neto, Carlos Melo. Tal relação parece mexer na imaginação de escritores como José Lins do Rêgo (e tantos outros), pois comparar o mundo do avô com o do neto é uma maneira de sublinhar o choque de gerações, as guinadas na história de uma família e, possivelmente, descrever sua decadência. Zé Paulino, o senhor de engenho, dono da Fazenda Santa Rosa, é um gigante aos olhos do neto Carlos Melo. O senhor de engenho manda e desmanda em tudo e em todos, mas não deixa de ser um fazendeiro rude. Zé Paulino decide enviar seu neto para escola. Carlos Melo acaba se tornando bacharel em Direito, formado pela prestigiosa Faculdade de Direito do Recife. Volta para o engenho, e a despeito de toda sua instrução e refinamento, mostra-se um fraco. Não tem a fibra moral, a coragem, a disposição de enfrentar problemas que tinha o seu avô. Alguma energia fundamental se perdeu na passagem de gerações. Valores mudaram e, com isso, mundos ruíram. A beleza e a tristeza dos três romances de Zé Lins que contam a saga de Carlos Melo está na certeza que o tempo é irreversível, e até os mais sólidas casas de engenho um dia se desmancham no ar.
O que sempre me encantou nesses romances foi a relação tensa de identidade afetiva e diferença de visão de mundo entre avô e neto. Talvez porque sempre me visse dessa maneira quando pensava em meu avô. Nosso elo afetivo era imenso. Sempre conversavamos muito. Ele contava suas inúmeras histórias repetidamente. Para mim, o passado sempre foi algo fascinante, e talvez por isso, por essa curiosidade enorme sobre como as coisas tinham sido, sempre tenha gostado de conversar com pessoas mais velhas, sobretudo meus avós. A criança e o idoso, apesar da enorme distância etária que os separa, estão unidos pela posição marginal na qual se encontram em relação ao mundo sério dos adultos. Para criança, o mundo é todo novidade. Para o idoso, recontar a vida é uma terapia e uma necessidade. Dessas duas disposições - uma de saber tudo e a outra de querer recontar tudo - nasce a bela aliança entre avô e neto, repleta de cumplicidade e carinho.
Mas as distâncias também são enormes. Apesar de preservar tanto a memória de meu avô, sinto-me tão diferente dele. Carrego o seu nome, o que dá uma dramaticidade ainda maior para essa dialética entre semelhanças e diferenças. Às vezes penso o que o velho Alfredo pensaria do neto, do jovem Alfredo. Não há dúvidas que tive muito maiores chances na vida de estudar, de viajar, de escolher meus caminhos profissionais, de ler livros, de descobrir outros mundos, mas tais "melhoramentos" não me fizeram necessariamente "melhor" que meu avô. Sinto-me diante de meu avô, do jeito que Carlos Melo se sentia frente a Zé Paulino.
Meu avô tinha uma fé inquebrantável. Era um homem de fé, que dedicou sua vida à evangelização e à palavra de Deus. Sua vida era guiada por essa fé, e suas ações estavam todas baseadas nessa inabalável crença. De minha parte, sou mais dúvida que certeza. Mais hesitação do que ação. O questionamento sobre os fundamentos da ação e das crenças que guiam tal ação muitas vezes leva a um ceticismo que imobiliza qualquer ação. Os livros deveriam instruir o homem, tornar suas decisões mais bem informadas e assentadas. No entanto, muitas vezes sinto que a vida intelectual acaba deixando as pessoas em encruzilhadas das quais elas não conseguem sair. Justiça seja feita, talvez isso nada tenha a ver com a vida intelectual, mas com meu temperamento mais íntimo, com meu jeito de ser, com minhas incertezas metafísicas.
Meu avô estava bem à direita no espectro político. Tinha simpatia pela ditadura (hoje chamada de ditabranda) brasileira. Eu me considero uma pessoa politizada, com posições políticas mais à esquerda, sem nenhuma condescendência em relação a qualquer ditadura, seja de esquerda, seja de direita. Filho de uma classe média politizada, tenho plena consciência que os prinicipais problemas do Brasil só terão alguma solução no dia que associarmos o nosso destino ao dos inúmeros excluídos de nossa sociedade. No dia em que, finalmente, houver inclusão desse imenso contigente pobre à esfera da cidadania e do consumo, seremos um país minimamente decente. Toda essa consciência política, no entanto, não me levou a fazer nada, absolutamente nada, para mudar o status quo de meu país. Talvez o gesto mais "revolucionário" que tenha feito na minha vida tenha sido votar em João Paulo para prefeito em 2000. Meu avô, com toda direitice dele e limitações políticas, fez muito mais para ajudar aos pobres do que eu fiz. E fez da maneira mais produtiva possível: criando uma escola. Num mundo em que picaretas da fé ficam ricos às custas da exploração da pobreza e da ignorância, meu avô tirava dinheiro do bolso para ajudar as pessoas que precisavam, e fez todo esforço para criar essa escola primária, nos fundos da 3a Igreja Presbiteriana Independente do Recife, no bairro da Macaxeira. Depois, na segunda administração Jarbas, a escola foi encampada pela prefeitura do Recife, e hoje existe como Escola Municipal Nadir Colaço, na Avenida Norte. E continua fazendo uma imensa diferença na vida das crianças daquela comunidade.
Uma das coisas que mais me comovia no meu avô era a sua devoção à comunidade da Macaxeira. Inúmeras vezes fui com vovô a este bairro, com ele dirigindo seu Chevette velhinho, fazendo visitas ao povo mais humilde e simples de sua igreja. As pessoas serviam café, biscoito, bolo para meu avô, que comilão que era, aceitava tudo sem a menor cerimônia. Eu tinha nojo daqueles lanches. Achava tudo tão sujo e pobre. Hoje tenho vergonha desse sentimento. Meu avô me dava a oportunidade de conhecer o Brasil e eu ficava com medo de tomar água suja. Acho que nunca vi tantos pobres, negros, mestiços na minha vida como na minha infância. Não só ele visitava pessoas da comunidade, como as recebia na sua casa, inclusive na mesa do almoço. Posso dizer que conheci o Brasil na casa de meu avô. O terraço de sua casa era um espaço de co-existência de tantas classes sociais. Desncessário dizer que isso desapareceu . Depois tudo na minha vida se aburguesaria. Na escola, na faculdade, no condomínio, nas igrejas que frequentei, todos eram e são de classe média, todos são mais ou menos brancos, mais ou menos educados, mais ou menos burgueses. As igrejas de classe média que as pessoas da minha família vão são grupos de apoio terapêutico de classe média, onde as pessoas oram juntas para resolverem seus problemas pequeno-burgueses. O mais irônico de tudo - e isso eu só pude perceber mais tarde - que era o direitista de meu avô, sem nenhuma sofisticação teológica, o único da minha família que de fato tinha consciência da ética verdadeiramente revolucionária do cristianismo. Do cristianismo como amor ao próximo, traduzido em melhorar a vida do próximo, em trazer esperança não só de uma vida eterna, mas de uma vida digna na terra, pois o velho Alfredo sempre associou o trabalho evangelista à ação social. E essa é uma das mais belas contradições e ambiguidades que a vida já me mostrou.
Vejo meu avô como um gigante, apesar de ter estudado mais, viajado mais, lido mais que o velho Alfredo. Reconheço sem tristeza que ele é "melhor" do que eu. Pois isso me dará o metro certo para seguir a minha vida e talvez realizar aquilo que o velho Alfredo tenha feito tão bem na sua vida.
Amanhã fará dez anos que vovô morreu. A bem da verdade, não creio que tenha morrido. A morte é sempre um conceito tão problemático. Acredito que parte dele se foi. Outra parte continuará aqui, no coração daqueles que o amaram, e nas obras que deixou.
O que sempre me encantou no romance Menino de engenho (1932) de José Lins do Rêgo foi a bonita relação entre avô, Zé Paulino e o neto, Carlos Melo. Tal relação parece mexer na imaginação de escritores como José Lins do Rêgo (e tantos outros), pois comparar o mundo do avô com o do neto é uma maneira de sublinhar o choque de gerações, as guinadas na história de uma família e, possivelmente, descrever sua decadência. Zé Paulino, o senhor de engenho, dono da Fazenda Santa Rosa, é um gigante aos olhos do neto Carlos Melo. O senhor de engenho manda e desmanda em tudo e em todos, mas não deixa de ser um fazendeiro rude. Zé Paulino decide enviar seu neto para escola. Carlos Melo acaba se tornando bacharel em Direito, formado pela prestigiosa Faculdade de Direito do Recife. Volta para o engenho, e a despeito de toda sua instrução e refinamento, mostra-se um fraco. Não tem a fibra moral, a coragem, a disposição de enfrentar problemas que tinha o seu avô. Alguma energia fundamental se perdeu na passagem de gerações. Valores mudaram e, com isso, mundos ruíram. A beleza e a tristeza dos três romances de Zé Lins que contam a saga de Carlos Melo está na certeza que o tempo é irreversível, e até os mais sólidas casas de engenho um dia se desmancham no ar.
O que sempre me encantou nesses romances foi a relação tensa de identidade afetiva e diferença de visão de mundo entre avô e neto. Talvez porque sempre me visse dessa maneira quando pensava em meu avô. Nosso elo afetivo era imenso. Sempre conversavamos muito. Ele contava suas inúmeras histórias repetidamente. Para mim, o passado sempre foi algo fascinante, e talvez por isso, por essa curiosidade enorme sobre como as coisas tinham sido, sempre tenha gostado de conversar com pessoas mais velhas, sobretudo meus avós. A criança e o idoso, apesar da enorme distância etária que os separa, estão unidos pela posição marginal na qual se encontram em relação ao mundo sério dos adultos. Para criança, o mundo é todo novidade. Para o idoso, recontar a vida é uma terapia e uma necessidade. Dessas duas disposições - uma de saber tudo e a outra de querer recontar tudo - nasce a bela aliança entre avô e neto, repleta de cumplicidade e carinho.
Mas as distâncias também são enormes. Apesar de preservar tanto a memória de meu avô, sinto-me tão diferente dele. Carrego o seu nome, o que dá uma dramaticidade ainda maior para essa dialética entre semelhanças e diferenças. Às vezes penso o que o velho Alfredo pensaria do neto, do jovem Alfredo. Não há dúvidas que tive muito maiores chances na vida de estudar, de viajar, de escolher meus caminhos profissionais, de ler livros, de descobrir outros mundos, mas tais "melhoramentos" não me fizeram necessariamente "melhor" que meu avô. Sinto-me diante de meu avô, do jeito que Carlos Melo se sentia frente a Zé Paulino.
Meu avô tinha uma fé inquebrantável. Era um homem de fé, que dedicou sua vida à evangelização e à palavra de Deus. Sua vida era guiada por essa fé, e suas ações estavam todas baseadas nessa inabalável crença. De minha parte, sou mais dúvida que certeza. Mais hesitação do que ação. O questionamento sobre os fundamentos da ação e das crenças que guiam tal ação muitas vezes leva a um ceticismo que imobiliza qualquer ação. Os livros deveriam instruir o homem, tornar suas decisões mais bem informadas e assentadas. No entanto, muitas vezes sinto que a vida intelectual acaba deixando as pessoas em encruzilhadas das quais elas não conseguem sair. Justiça seja feita, talvez isso nada tenha a ver com a vida intelectual, mas com meu temperamento mais íntimo, com meu jeito de ser, com minhas incertezas metafísicas.
Meu avô estava bem à direita no espectro político. Tinha simpatia pela ditadura (hoje chamada de ditabranda) brasileira. Eu me considero uma pessoa politizada, com posições políticas mais à esquerda, sem nenhuma condescendência em relação a qualquer ditadura, seja de esquerda, seja de direita. Filho de uma classe média politizada, tenho plena consciência que os prinicipais problemas do Brasil só terão alguma solução no dia que associarmos o nosso destino ao dos inúmeros excluídos de nossa sociedade. No dia em que, finalmente, houver inclusão desse imenso contigente pobre à esfera da cidadania e do consumo, seremos um país minimamente decente. Toda essa consciência política, no entanto, não me levou a fazer nada, absolutamente nada, para mudar o status quo de meu país. Talvez o gesto mais "revolucionário" que tenha feito na minha vida tenha sido votar em João Paulo para prefeito em 2000. Meu avô, com toda direitice dele e limitações políticas, fez muito mais para ajudar aos pobres do que eu fiz. E fez da maneira mais produtiva possível: criando uma escola. Num mundo em que picaretas da fé ficam ricos às custas da exploração da pobreza e da ignorância, meu avô tirava dinheiro do bolso para ajudar as pessoas que precisavam, e fez todo esforço para criar essa escola primária, nos fundos da 3a Igreja Presbiteriana Independente do Recife, no bairro da Macaxeira. Depois, na segunda administração Jarbas, a escola foi encampada pela prefeitura do Recife, e hoje existe como Escola Municipal Nadir Colaço, na Avenida Norte. E continua fazendo uma imensa diferença na vida das crianças daquela comunidade.
Uma das coisas que mais me comovia no meu avô era a sua devoção à comunidade da Macaxeira. Inúmeras vezes fui com vovô a este bairro, com ele dirigindo seu Chevette velhinho, fazendo visitas ao povo mais humilde e simples de sua igreja. As pessoas serviam café, biscoito, bolo para meu avô, que comilão que era, aceitava tudo sem a menor cerimônia. Eu tinha nojo daqueles lanches. Achava tudo tão sujo e pobre. Hoje tenho vergonha desse sentimento. Meu avô me dava a oportunidade de conhecer o Brasil e eu ficava com medo de tomar água suja. Acho que nunca vi tantos pobres, negros, mestiços na minha vida como na minha infância. Não só ele visitava pessoas da comunidade, como as recebia na sua casa, inclusive na mesa do almoço. Posso dizer que conheci o Brasil na casa de meu avô. O terraço de sua casa era um espaço de co-existência de tantas classes sociais. Desncessário dizer que isso desapareceu . Depois tudo na minha vida se aburguesaria. Na escola, na faculdade, no condomínio, nas igrejas que frequentei, todos eram e são de classe média, todos são mais ou menos brancos, mais ou menos educados, mais ou menos burgueses. As igrejas de classe média que as pessoas da minha família vão são grupos de apoio terapêutico de classe média, onde as pessoas oram juntas para resolverem seus problemas pequeno-burgueses. O mais irônico de tudo - e isso eu só pude perceber mais tarde - que era o direitista de meu avô, sem nenhuma sofisticação teológica, o único da minha família que de fato tinha consciência da ética verdadeiramente revolucionária do cristianismo. Do cristianismo como amor ao próximo, traduzido em melhorar a vida do próximo, em trazer esperança não só de uma vida eterna, mas de uma vida digna na terra, pois o velho Alfredo sempre associou o trabalho evangelista à ação social. E essa é uma das mais belas contradições e ambiguidades que a vida já me mostrou.
Vejo meu avô como um gigante, apesar de ter estudado mais, viajado mais, lido mais que o velho Alfredo. Reconheço sem tristeza que ele é "melhor" do que eu. Pois isso me dará o metro certo para seguir a minha vida e talvez realizar aquilo que o velho Alfredo tenha feito tão bem na sua vida.
Amanhã fará dez anos que vovô morreu. A bem da verdade, não creio que tenha morrido. A morte é sempre um conceito tão problemático. Acredito que parte dele se foi. Outra parte continuará aqui, no coração daqueles que o amaram, e nas obras que deixou.