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sábado, novembro 20, 2004

CELSO FURTADO (1920-2004)

Celso Furtado morreu hoje. As ciências sociais perdem um grande economista, que escreveu o maior clássico de nossa historiografia econômica, Formação Econômica do Brasil. O Brasil perde um grande homem, que sonhou a vida inteira com a possibilidade de, através da ação racional sobre a História, tirar o Brasil do ciclo de subdesenvolvimento. O Nordeste perde um filho e um lutador de sua causa.
Que Celso Furtado teve seus erros de visão e diagnósticos, não há o que contestar. Mas isso não diminui a estatura de gigante deste homem - quase um quixote brasileiro, lutando pelos seus ideais e pelos seus sonhos de justiça numa terra que tantas vezes lhe negou o direito a esses sonhos - quanta diferença em relação aos tecnocratas contemporâneos que se conformam tão facilmente com suas fórmulas de manual.
Aqui seguem dois textos de Furtado. No primeiro, ele fala sobre os motivos que o levaram a estudar economia. No segundo, Celso Furtado dá sua perspectiva sobre o dia do golpe militar de 1964. Trata-se de um testemunho muito interessante.


Aventuras de um economista brasileiro

"O Nordeste brasileiro, onde nasci e vivi até aos vinte anos, constitui o mais antigo núcleo de povoamento do Brasil. Após uma fase de prosperidade nos séculos XVI e XVII, a região conhece um longo declínio, o que explica que as estruturas sociais aí sejam mais rígidas que em qualquer outra área do país. A descoberta do ouro e dos diamantes nas Minas Gerais lhe retirou a preeminência econômica, e a transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro significou a perda da preeminência política. Na minha infância, no sertão, a política absorvia parte importante da vida dos chefes de grandes famílias: consistia essencialmente em rivalidades e conflitos, com apelo corrente à violência, entre famílias e grupos de famílias locais. As incursões de cangaceiros eram freqüentes. Histórias de violências povoaram a minha infância. Referiam-se mais a atos de arbitrariedade, prepotência e crueldade que a gestos de heroísmo à western.
Nesse mundo marcado pela incerteza e pela brutalidade, a forma mais corrente de afirmação consistia em escapar para o sobrenatural. Os grandes milagreiros existiam como legenda, mas também como presença. Não longe de onde morávamos, reinava o Padre Cícero.

Quando eu tinha oito anos, surgiu um chefe político no estado, que convulsionou profundamente a vida de toda a comunidade: João Pessoa que, no espírito da população, fundia as imagens do chefe e do milagreiro. Eu ouvia crédulo, das domésticas de minha casa, as histórias desse homem que se disfarçava "numa pessoa qualquer" para praticar o bem nos bairros mais humildes. O assassínio brutal desse homem (exatamente no dia em que eu completava os meus dez anos) provocou uma tal angústia coletiva que ainda hoje não posso me recordar sem me emocionar.

Esses dados quiçá possam explicar a formação em meu espírito de certas idéias-força que considero como invariantes, das quais dificilmente poderia libertar-me sem correr o risco de desestruturar minha própria personalidade. A primeira é a de que a arbitrariedade e a violência tendem a dominar no mundo dos homens. A segunda é a de que a luta contra esse estado de coisas exige algo mais que simples esquemas racionais. A terceira é a de que essa luta é como um rio que passa: traz sempre águas novas, ninguém a ganha propriamente e nenhuma derrota é definitiva. (...) Das influências intelectuais que sobre mim se exerceram desde o ginásio, identifico três. Em primeiro lugar, a positivista, com a primazia da razão, a idéia de que todo conhecimento em sua forma superior se apresenta como conhecimento científico. Meu ateísmo, que cristalizara desde os 13 anos, encontrou aí uma fonte de justificação e um motivo de orgulho. A segunda linha de influência vem de Marx, como subproduto de meu interesse pela História. Foi lendo a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, que me dei conta pela primeira vez de que a busca de um sentido para a história era uma atividade intelectual perfeitamente válida. A terceira linha de influência é a da sociologia norte-americana, em particular da teoria antropológica da cultura, com a qual tomei contato pela primeira vez, aos 17 anos, lendo Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre. (...)

O desejo de vincular a atividade intelectual criadora à história será o ponto de partida de meu interesse pelas ciências sociais. Fixou-se no meu espírito a idéia de que o homem pode atuar racionalmente sobre a História. Cheguei ao estudo da economia por dois caminhos distintos: a história e a organização. Os dois enfoques levavam a uma visão global, a macroeconômica. Dessa forma, a economia não chegaria a ser para mim mais que um instrumental. Nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico. (...)
Minhas atividades de economista se desdobraram em três fases. A primeira compreende os anos que passei na CEPAL, que me permitiram um contato direto com os problemas do desenvolvimento na maior parte dos países latino-americanos. A segunda são os anos que dediquei ao Nordeste brasileiro, como planejador e executor da política de desenvolvimento da região nos governos de Kubitschek, Quadros e Goulart. A terceira são os anos de vida universitária, primeiro nos Estados Unidos, e em seguida, e mais prolongadamente, em Paris. Essas atividades, no que respeita à pesquisa, se desenvolveram em torno de três temas: o fenômeno da expansão da economia capitalista, o da especificidade do subdesenvolvimento e o da formação histórica do Brasil vista do ângulo econômico. O esforço para compreender o atraso brasileiro levou-me a pensar na especificidade do subdesenvolvimento. Convenci-me desde então de que o subdesenvolvimento é a resultante de um processo de dependência, e que para compreender esse fenômeno era necessário estudar a estrutura do sistema global: identificar as invariâncias no quadro de sua história. O desejo de compreender o meu próprio país absorveu a parte principal de minhas energias intelectuais no quarto de século transcorrido desde que escrevi a minha tese sobre a economia colonial brasileira. (...)

As circunstâncias que modificaram o curso de minha vida em 1964 somente em parte são responsáveis pela decisão que tomei de dedicar-me inteiramente à vida acadêmica. A participação indireta e direta que durante quinze anos tive na formulação de políticas convenceu-me de que nossa debilidade maior está na pobreza de formulações teóricas e de idéias operacionais. A esse vazio se deve que a atividade política tenda a organizar-se em torno de esquemas importados os mais disparatados. A linha de menor resistência do mimetismo ideológico tende a prevalecer. (...)

Se tivesse de, em poucas linhas, traçar o retrato típico do intelectual nos nossos países subdesenvolvidos, diria que ele reúne em si noventa por cento de malabarista e dez por cento de santo. Assim, a probabilidade de que se corrompa, quando já não nasce sem caráter, é de nove em dez. Se escapa à regra, será implacavelmente perseguido e, por isso mesmo, uma viravolta inesperada dos acontecimentos poderá transformá-lo em herói nacional. Se persiste em não corromper-se, daí para a fogueira a distância é infinitesimal. De resto, por maior que seja a sua arrogância, nunca entenderá o que lhe terá ocorrido."
"Aventuras de um economista brasileiro" (1972), em International Social Sciences Journal, vol. XXX, nº 1-2, 1973, Paris.

A retirada
"No dia 31 de março [de 1964], estava em meu gabinete quando, às 22h30, entrou um auxiliar para informar-me de que ouvira pela Voz da América que uma sublevação militar brotara em Minas Gerais, citando os nomes dos cabeças etc. Engoli o meu travo de humilhação, pensando que seria sempre pelos "irmãos do Norte" que tomaríamos conhecimento do que de importante acontecia entre nós. Várias confirmações chegaram em seguida. À meia-noite, um vigia subiu nervoso informando que militares haviam postado uma metralhadora diante do edifício da SUDENE. Saí do meu gabinete à 1h30 de 1º de abril, e a metralhadora havia sido escondida, pois eu não a vi.

Dirigi-me para casa, em Boa Viagem. A meio caminho, veio-me ao espírito, como uma faísca que subitamente deixa ver no meio do escuro, que tudo podia estar sendo decidido naquele instante. Em casa, eu seria facilmente preso e posto à margem de tudo. Disse ao motorista que desse meia-volta e se dirigisse ao Palácio das Princesas, sede do governo estadual. Lá encontrei um grupo de pessoas em torno do governador Miguel Arraes, que falava ao telefone. Às 3 horas, Arraes recolheu-se para repousar e, passadas as 4 horas, decidi ir até minha residência, onde vivia sozinho, tendo como única companhia um cachorro. Aqui e acolá cruzei tanques de guerra, mas em nenhum momento meu carro, de placa do governo federal, foi convidado a parar. Às 8h30 da manhã, estava de volta à cidade, dirigindo-me à SUDENE. (...)
Fui para casa e subitamente senti o peso de estar só. A solidão pode ser uma coisa rica, mas também terrificante. Quis arrumar papéis, ver as notas que estivera redigindo como um testamento intelectual. Mas tudo perdera sentido. Era como se um grande vazio se houvesse formado em torno de mim, repentinamente. Ocorreu-me ouvir música. Como uma túnica inconsútil, ela me foi envolvendo suavemente. Ouvi a cantata Alexandre Nevsky, de Prokofiev. Deixei-me embalar pelo elã de sua cavalgada, quase chorei na travessia do campo dos mortos, e respirei aliviado com o canto da vitória. Sem música, viver seria muito mais difícil.(...)
Atravessava pela última vez a porta daquela instituição que surgira e adquirira fama mundial sob minha direção. Era muito mais do que uma agência administrativa. Graças a ela, emergira o Nordeste como entidade política. Tudo tivera de ser disputado palmo a palmo. Nunca me ocorrera pensar que a Operação Nordeste tivesse um ponto final tão melancólico, com seu comandante saindo subrepticiamente, em meio a pessoas que, temendo comprometer-se, evitavam cumprimentá-lo. (...) As prisões se multiplicavam, como se estivesse sendo executado minucioso plano adrede preparado para desmantelar toda a capacidade de resistência da sociedade civil. Dedicava-me a ler coisas sem conexão com o presente. Caiu em minhas mãos o livro de Albert Camus, La Peste, que li com forte emoção. (...) Tirava os olhos do livro de Camus e via a cidade invadida por roedores enormes, a deslocar-se com grande rapidez, despejando no ar gases pestilentos. Foi nesse estado de espírito que ouvi pelo rádio a leitura dos atos institucionais que excluíam da vida pública um grande número de cidadãos. Entre os nomes que constituíam o pelotão de frente, figurava o meu. Cassado de direitos! Proibido de ocupar-se da coisa pública! Processo secreto. Provavelmente, a acusação fora a mesma feita a Sócrates: perverter a mocidade! (...)

A situação no Rio de Janeiro era constrangedora. Muitos amigos estavam nas prisões ou asilados em embaixadas. E os encontros fortuitos nas ruas podiam ser embaraçosos, pois muita gente não queria ser vista (fotografada, se dizia) na companhia de um "cassado". Decidi então aceitar um convite do Instituto latino-americano de planejamento econômico e social, ligado à CEPAL, par pronunciar uma série de conferências em Santiago do Chile. Um contrato de três meses que me daria tempo para tomar pé na nova realidade e encaminhar decisões a mais longo prazo. (...) Em poucos minutos, meu avião decolava rumo ao Pacífico. Sentira certa angústia ao cortar o último vínculo com o mundo que por tanto tempo dera sentido à minha vida. Dedicara anos a organizar minha fantasia, na esperança de um dia transformá-la em instrumento de ação a serviço de meu pobre e desvalido Nordeste. Agora, essa fantasia estava desfeita, desmoronara como uma estrela que se estilhaça. Era como se uma enxurrada tudo houvesse arrastado. Subitamente, deparei à direita do avião o perfil altaneiro dos picos gelados dos Andes. Deixei-me levar pelo deslumbramento. Eram os vastos horizontes do mundo com seu sedutor canto de sereias. Senti ligeiro calafrio, como se meu adormecido espírito de cavaleiro andante fizesse sinais de despertar."


terça-feira, novembro 16, 2004

A REPÚBLICA

115 anos de República. Como se sabe, nossa República não passou de um conchavo entre políticos e generais. O povo, como diria Aristides Lobo, numa das frases mais citadas de nossa historiografia, “assistiria a tudo bestializado”. O mesmo povo, claro, que nunca havia sido consultado a respeito das instituições monárquicas. Nossa monarquia e nossa independência também não passaram de um conchavo - de pai para filho. Já o povo, ah..., o povo é sempre este detalhe inconveniente que, no final, sempre paga as contas das presepadas do andar de cima.

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Mas o brasileiro é aquele que nunca desiste. Pelo menos assim diz a propaganda lulista. Nunca desiste de pagar imposto e não receber nada em troca... Dizem que Lula está reeditando o ufanismo das propagandas nacionalistas - típicas da época do Milagre Econômico (Brasil, ame-o ou deixe-o). Mas Marx já dizia que a história só se repete como farsa. Enquanto no Brasil do milagre, as aparências das coisas (crescimento econômico, pleno emprego, etc) correspondiam com o discurso triunfalista da ideologia, no Brasil lulista, o discurso ufanista é quase uma piada de mal gosto.

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O Brasil não precisa de gurus da auto-ajuda, nem precisa de “pensamento positivo” para levantar sua auto-estima. O que o precisamos fazer é colocar o dedo na nossa ferida. É enfrentar o monstro do nosso apartheid social. Toda vez que esse país resolveu se conhecer melhor, ele se tornou melhor do que era antes. A nossa imensa dívida social deveria ser o assunto a mais discutido neste país, mobilizando a juventude e as boas cabeças deste país.

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Domingo eu li uma matéria chocante no Jornal do Commercio. Era sobre um grupo de menores que comandava os assaltos na favela do Coque. Devido a prisão dos bandidos mais velhos, os mais novos -cada vez mais novos - assumiam os pontos de assalto. Para se ter uma idéia, o mais velho tinha 17 anos e assalta carros nos cruzamentos do Recife, para depois comprar crack. A brincadeira mais frequente entre as crianças dessa comunidade é fazer “baculejo” (a revista policial) . Uns brincam de policiais, outros de bandido.
No mesmo domingo, leio uma matéria assinada por Monica Bergamo, na Folha de S. Paulo, sobre gente fina que gasta 2500 reais para comprar um sapato. Na mesma Folha li uma entrevista com Henrique Meireles, tão feliz porque o risco Brasil tinha caído - como se isso fosse resolver nosso problema.


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O menino do Coque, a dondoca dos Jardins e o tecnocrata de Brasília - cada um vive no seu mundo particular, separados pelos abismos tão característicos de nossa exclusão social. São prova de nosso apartheid. Tirando o futebol, nada consegue nos unir enquanto nação. Somos mais um ajuntamento que uma comunidade. Vivemos nos casulos de nossa individualidade culpando as forças abstratas - a violência que está demais, a globalização que está cruel com o Brasil, os políticos corruptos - que nos aterroriza. Gostamos mais de reclamar do que agir . Somos mais ranzinzas que críticos.
Vez por outra, no entanto, estes mundos se encontram: geralmente num cruzamento qualquer. E quando se encontram, estão longes de realizar aquilo que Giba Freyre chamava de “confraternização dos opostos”.

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O Brasil precisa mais da verdade crua do que slogans fabricados.


terça-feira, novembro 09, 2004

O QUE DEU ERRADO?
(este post não é sobre a derrota de Kerry)

Uma das tendências principais do romance brasileiro é a memorialista. Nossos romancistas parecem obcecados com a idéia de personagens que precisam revisitar os seus passados para fazer as pazes com os demônios de suas memórias. Os dois maiores romances de nossa jovem literatura - Dom Casmurro, no séc. XIX e Grande Sertão: Veredas no séc XX - têm a forma de uma autobiografia ficcional. Tanto Bentinho Santiago quanto Riobaldo são narradores atormentados com as suas histórias. Bentinho se pergunta por que seu casamento com Capitu não deu certo. Questiona-se por que a Capitu de Matacavalos (a Capitu de sua infância, por quem se apaixonou e com quem fez mil planos) não é a mesma que a Capitu da Glória (a Capitu, sua esposa, que possivelmente o traiu com o seu melhor amigo). Já Riobaldo encontra-se aflito com o seu passado de jagunço, no qual parece ter feito um pacto com o Diabo e ter experimentado um amor intenso com um companheiro de luta. Para os dois, narrar o passado que os aflinge é uma maneira de expiar a culpa que porventura tenham, de aliviar suas próprias consciências.

Outros romances memorialistas têm a mesma tônica. Veja-se São Bernardo e Angústia de Graciliano Ramos, ou a trilogia da cana-de-açúcar de José Lins do Rêgo (Menino de Engenho - Doidinho - Banguê) no qual Carlos Melo (o narrador-personagem) narra a decadência de sua família, confirmada e constatada pela sua inabilidade de se afirmar como herdeiro do avô e de tomar as rédeas da própria vida. Estes romances tratam de mundos arruinados. Mundos irresolvidos. Algo neles de muito errado se passou. Por isso, estes personagens escrevem. Porque narrar é dar sentido a uma série de experiências que na época em que foram vividas não pareciam ter nenhum. Então, resolvem examinar esse mundo, esse passado e se perguntam: o que deu errado?


Esse tema, tão bem analisado pela imaginação brasileira, através dos romances, está internalizado na nossa própria sensibilidade. No nosso jeito de ser. Diante das ruínas de nossa modernidade, perguntamos: afinal, por que demos errado? Por que somos uma sociedade tão desigual? Por que somos tão corruptos? O que foi que aconteceu para sermos assim? Respostas não faltam: a história de nossa sociabilidade escravocrata, nossas péssimas decisões políticas, etc. Somos uma nação que tenta decifrar nosso passado: e quase sempre, o passado nos condena.

Bem, se o passado nos condena, pode-se dizer também que há alguns passados que servem como elixir existencial. É o passado adorado dos nostálgicos. Nostálgicos como eu. Quando me vejo dilacerado pelos turbilhões da minha vida solitária no exílio californiano, sempre procuro uma ilha na minha memória. Penso no passado: uma cena da infância, o lirismo de um amor perdido (para depois me perguntar: o que deu errado?), a alegria de sólidas amizades. Fico imerso nesse mundo: imagino-me pegando um ônibus no Recife, derramando meu amor no laguinho do campus, andando pela Conde da Boa Vista atrás de livros, conversando potoca ou discutindo filosofia com Diogo e Jampa na cantina do Centro de Filosofia. Imaginar este mundo passado é uma maneira de me ver como um ser completo. É uma maneira de atingir uma plenitude que não tenho no meu presente, tão fragmentado. A memória, nesses casos, funciona como um ficção da gente mesmo. Afinal, nós sempre nos esquecemos que a memória não é nada confiável- já que não corresponde ao passado de forma precisa e objetiva. Na memória atuam nossos desejos, nossas vontades, nossas projeções. Só a memória é capaz de fazer me sentir completo por um instante, porque ela apaga as angústias, as frustrações, as agruras do meu horizonte de então. Ela seleciona, decanta as experiências - faz o amor mais bonito, Recife mais lírico, a comida de minha avó mais gostosa, as alegrias mais intensas - e desse modo cria estas ilhas sublimes...verdadeiro elixir do escapismo existencial.

Sempre que me sinto tentado a habitar uma dessas ilhas, lembro os conselhos de um antigo professor: Quando vislumbramos o passado mais atraente e interessante que o presente, é porque algo muito problemático se passa com este.

O professor tem toda razão. Devemos exorcizar o passado que nos condena, e repelir o passado que nos seduz - o passado dos nostálgicos. Afinal, devemos ser contemporâneos de nós mesmos e não apenas sobreviventes de nossa história. É isso que falo para mim quando acordo e vejo no espelho um sergipano feio, descabelado, barbado e nostálgico, que se pergunta: Afinal, o que deu errado?


quinta-feira, novembro 04, 2004

NÃO DEU...

Desta vez não deu mesmo. Bush venceu as eleições, e pode-se dizer que com mais folga do que imaginava.

Aqui em Berkeley, o dia amanheceu chuvoso. O cinza foi a cor predominante do dia. A chuva desempenhou o papel de verdadeira metonímia das lágrimas da Califórnia do Norte. Ontem à noite vi gente chorando aqui em Berkeley. Hoje de manhã, a depressão era generalizada. O frio, a chuva, a tristeza pela derrota - tudo parecia conspirar para formar uma atmosfera sombria aqui em Berkeley.

A estratégia de Karl Rove foi impecável: conseguiram trazer mais republicanos às urnas que os democratas. A grande maioria destes novos eleitores eram os evangélicos - alguns que não votaram em Bush em 2000 por causa das histórias que o envolviam com o alcoolismo.

Quem são estes evangélicos do Bible Belt (cinturão da Bíblia) ? Gente que tira seus filhos da escola do Estado para educá-los em casa, porque não querem que eles se tornem expostos às teorias evolucionistas do surgimento da vida. E depois ainda dizem que os muçulmanos são fundamentalistas e homofóbicos (vale a pena lembrar que em 11 estados ontem foi aprovado um indicativo que proibe o casamento entre homossexuais. É necessário 35 estados aprovarem este indicativo para se tornar uma emenda constitucional).

Não tenho nada contra a fé. Acredito, inclusive, que a fé engradence o homem. Torna-o maior, em algumas ocasiões, do que ele é. Já contra a ignorância e a intolerância alimentadas por uma retórica da fé, tenho muitas objeções.





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