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sábado, julho 03, 2004

TEMPOS DE CONCHA...

Outra dia estava conversando com Valéria- que foi contemporânea minha na UFPE (Valéria era estudante de jornalismo). Nessa conversa tive o prazer de relembrar o jornal A Concha. A Concha era o jornal dos estudantes da Federal. Ou se de fato não era, pelo menos era essa a intenção. Quem coordenava esse jornal era a competente e profissionalíssima Aline Cordeiro. Maíra Brito, Diogo Almeida e Marcelo Pedroso (de Paris) também trabalharam nele. Não lembro ao certo como acabei sendo um dos seus "colaboradores". Só sei que eu escrevia sempre para a versão "on line" (que devia ser a menos lida). Também não tenho muita certeza sobre qual era a periodicidade do jornal.

Mas o que me motivava a escrever era essa minha ilusão, ou utopia, de achar que através dos artigos que escrevia poderia catalisar algum tipo de debate e tirar um pouco da letargia intelectual a minha geração. O ridículo de minhas pretensões denunciava a minha imaturidade - naquela época ainda muito mais aguda. Como sempre, o Brasil venceu. O Brasil sempre vence. A Concha acabou e os artigos nunca causaram nenhum tipo de discussão. Para dizer que nunca discuti nada, acredito que discuti - especificamente esse artigo abaixo - com Jampa, na cantina do Centro de Filosofia. Mas como as cefichianas passavam com seus umbiguinhos de fora, a concentração se dissipava e o debate perdia rendimento...:o)

Coloco no meu post um artigo que escrevi em 1999 sobre os direitos humanos. Eu queria ligar algumas noções rudimentares de sociologia (o caráter de classe de determinadas ideologias de alcance pretensamente universalistas, como a do "direitos humanos") com situações concretas, do dia-a-dia, que estavam na mídia. O assunto ainda é atualíssimo, e minhas posições acerca deste são as mesmas. A única coisa que me desagrada é o tom petulante do artigo.


Um peso, duas medidas

Alfredo Cesar Melo - Ciências Sociais

Estamos a poucos meses de um novo milênio, e a mesma civilização prometéica que enviou o homem à lua, ainda é capaz de se habituar de forma cínica às mais horrendas das barbáries. Diariamente, enquanto confortavelmente tomamos nosso café da manhã, ouvimos as notícias dos Balcãs, nas quais são dados - de maneira objetiva e contundente - os números de mortos, feridos e desabrigados pelos bombardeios da OTAN. Não gostaria de entrar nas implicações geopolíticas dessa guerra, mas tecer algumas reflexões sobre as nossas controversas atitudes diante daquilo que chamamos de “humano”. Todo esse comportamento ambíguo que adotamos, faz-me lembrar de um ensaio bastante polêmico do filósofo americano Richard Rorty, que basicamente argumentava que aqueles que ajudaram os judeus na II Guerra Mundial provavelmente o fizeram menos porque os viram como seres humanos, e mais porque pertenciam à mesma cidade, profissão ou agrupamento social.

Em outras palavras, ele tenta mostrar que para a grande maioria das pessoas, “humanidade” é uma abstração, e que a solidariedade se dá entre pessoas empáticas. Infelizmente ele parece estar certo e sua tese pode ser corroborada mediante acontecimentos como a tragédia da Columbine High School, no Colorado (EUA). Dois jovens fizeram uma matança, aterrorizando e chocando a sociedade americana. No mesmo dia, algumas dezenas de pessoas morreram e se feriram devido ao bombardeio da OTAN. A diferença no enfoque das mortes foi brutal. Enquanto os jovens americanos de "middle class" tiveram funeral ao som de Titanic cantado por Celine Dion, com direito a fotos de infância, relatos de ex-namoradas, dos pais, dos amigos; os iugoslavos mortos foram reduzidos a números, sem história, sem passado, sem ex-namoradas. Eram apenas mortos dissolvidos na impessoalidade dos números.

Não é necessário irmos a plagas tão distantes para vermos essa diferença de comportamento diante do mesmo fenômeno (no caso, a morte de pessoas). Numa “sociedade de classes” - para usar o jargão marxista - como a nossa, estamos sempre a lidar com essas interpretações dúbias. Essa é uma das críticas mais perspicazes (e atuais!) de Marx, que no seu “A Questão Judaica” denunciou a parcialidade dos direitos humanos, que eram essencialmente direitos dos burgueses. A burguesia se apropriava de um conceito universal e abstrato como o Direito do Homem, articulando-o em prol de seus interesses. Aqui no Brasil, essa parcialidade dos direitos humanos, por exemplo, acontece de maneira bastante nítida. O professor e sociólogo Luciano de Oliveira (UFPE) tem estudos que mostram que no Brasil, a questão dos direitos humanos só passou a ser discutida seriamente - com movimentos como “ Tortura Nunca Mais!” vindo à tona - depois da ditadura de 1964. Durante o período de maior repressão da ditadura, alguns jovens de classe média, com Marx no coração e fuzis à mão, resolveram brincar de Che Guevara no intuito de revolucionar Pindorama. Aqueles que não “desapareceram” , conheceram os porões da ditadura nas suas nuanças mais sórdidas.

Só a partir daí, os direitos humanos (do preso) passaram a entrar na agenda de discussões. Como se antes, muito pária não tivesse morrido nas chibatadas dos interrogatórios. Tenho uma leve desconfiança de que ainda hoje, quando não se é filho de juiz ou algo parecido, tais interrogatórios não são nada modernos.

Outro caso interessante foi o do desabamento do edifício Palace, no Rio de Janeiro. Não é preciso ser nenhum arguto observador para notar que a questão da moradia – assim como outras questões básicas de dignidade e sobrevivência – ainda não está resolvida, aqui no Brasil. Também não é preciso ser grande observador para verificar que todo em todo inverno testemunhamos o drama dos morros, dos barracos que deslizam deixando vários desamparados. Mas mesmo assim, o “Jornal Nacional” nos mostrava diariamente o drama daquelas pessoas do Palace, “sem lar”, com seus sonhos despedaçados, tornando impossível não nos solidarizarmos com a situação deles. Mesmo havendo um responsável por tudo aquilo (Sérgio Naya), ainda cogitaram uma indenização do governo, enquanto as questões sociais de moradia e seus agravantes merecem apenas o ostracismo dos arquivos de Brasília. Esse é um típico caso que se enquadra na crítica de Marx: um drama particular, que articulado através da mídia, insufla demandas por justiça, fazendo do caso uma questão primeira na agenda do país, indo chegar até ao presidente da República. Enquanto os deslizamentos nos morros são vistos como lamentáveis infortúnios.

Outra questão intrigante: Como um movimento tipo “Viva São Paulo!” acontece num período no qual as taxas de criminalidade e de homicídio estão diminuindo no estado? Provavelmente pelo fato terem assassinado alguns jovens de classe média, repletos de futuro, enquanto estavam se divertindo num bar. E isso é inadmissível.

Que aconteçam chacinas na periferia, isso é normal, mas os filhos da classe média têm o direito de se divertirem e voltarem para casa vivos. Então quando atrocidades como aquelas ocorrem, muitos atores globais vão para rua, vestidos de branco, pedirem paz e amor, e “dizerem um sonoro NÃO à violência”! E quando tragédias como a chacina da Candelária e a de Vigário Geral ocorrem, geralmente vêm mais acompanhadas da vergonha diante dos observadores internacionais, do que do choque com a morte sem sentido do “próximo”. E assim, cinicamente, prosseguimos nosso caminho. Com nossas elites e classes médias cultivando um “umbigocentrismo” que beira a mais tacanha das irresponsabilidades, normalmente colocando o corpo fora, pedindo para que o Estado – eterno Painho – resolva todos os problemas, como se a inoperância desse estado patrimonialista não fosse resultado da apropriação dessas mesmas elites, que sufoca e inviabiliza o acesso do estado ao pária, em forma de educação e mínimo de dignidade. Diante da olímpica indiferença dessas elites e sua incompetência “desumana” (oops!) para desenvolver qualquer projeto para nação, somos obrigados a “resolvermos” esses problemas de um jeito bem brasileiro, ou seja, o mais epidérmico e superficial possível. Se não podemos fazer nada em relação à pobreza (pois não temos nada a ver com isso, nada temos a ver com esse próximo), pelo menos que ela não se manifeste na nossa redondeza. Que quando pare nos sinais, não seja incomodado por pedintes. Que quando esteja no “shopping” não haja nenhum menino buchudo a pedir dinheiro. Afinal, isso é muito constrangedor. Ou para usar heurísticas expressões do nosso colunismo social, a mendicância em Resífilis deve ser considerada OUT. E se algo acontecer, se alguém morrer, nós iremos nos mobilizar, fazer um “Viva Recife!” , combater o comércio de armas, dar um não à violência, e nos enchermos de pensamentos positivos. Pois isso é Brasil: 500 anos de paliativos, 500 anos de pré-modernidade, deitados em berço esplêndido!



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