quarta-feira, maio 21, 2008
(Pequena parte da tese, em que trato do romance de Clarice como romance-arquivo da literatura brasileira, que crítica uma série de disposições do escritor brasileiro em relação ao povo e a missão de representá-lo. Como não poderia faltar, o romance também esboça uma crítica à própria prosa existencialista, de cunho universalista, de Lispector)
A ficção inicial de Clarice é conhecida por uma verve existencialista, que tenta problematizar aquilo que se chama de “condição humana”. Sua temática é marcada por questões da auto-descoberta, geralmente provocada por um contato com a alteridade (pode ser uma barata, como no caso de Paixão segundo GH, ou um cego mascando chiclete, como no caso do conto “Amor” de Laços de família)
No romance A hora da estrela, constataremos que a retórica universalizante dos romances existencialistas também é colocada em xeque.
Em alguns momentos do romance, o narrador procura uma identificação com a personagem Macabéa. Sabe que a distância entre eles é enorme, mas ainda assim almeja encontrar pontos dessa “condição humana” que hipoteticamente une todos os seres humanos na sua crise e nos seus problemas.
Quero neste instante falar da nordestina. É o seguinte: ela como uma cadela vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois reduzira-se a si. Também eu, de fracasso em fracasso, me reduzi a mim mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus (26).
Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada.(40).
Nunca pensara “eu sou eu”. Acho que julgava não ter direito. Era um acaso. Um feto jogado na lata de lixo embrulhado em um jornal. Há milhares como ela? Sim, e que são apenas um acaso. Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser um acaso porque escrevo, o que é um ato que é um fato.(45).
Os trechos são significativos, pois se referem a momentos em que o narrador está nivelando-se a Macabéa. A principal diferença é que sempre que ele se iguala à Macabéa, o faz de maneira figurativa, metafórica, enquanto uma linguagem mais literal é utilizada para descrever a situação de Macabéa. No primeiro trecho, o narrador “se reduziu a si mesmo”, mas “pelo menos” quer descobrir o mundo. Macabéa se reduziu a si mesma e se tornou uma autômata. Para referir-se a si mesmo, o emprego da linguagem figurada é evidente: serve para simbolizar uma depuração interior, movida pela busca incessante de sentido da vida e do mundo. No segundo caso, Macabéa é de fato uma sem-vida que não pensa ou reflete sobre sua condição. Da mesma forma pode ser analisada a comparação do “acaso” que tanto serve para definir a vida de Macabéa como a do narrador. Macabéa de fato é um acaso, pois poderia não existir: é substituível na engrenagem social, já que há milhares como ela nas cidades brasileiras O narrador, ao contrário, não se considera um acaso exatamente porque é escritor. Se “todos” são um acaso, uns são “menos” acasos do que outros, e no caso de Rodrigo SM, o que o salva do acaso é a sua profissão. Ao contrário de Macabéa, ele não é substituível. Pelo contrário, não é o escritor (o letrado de maneira geral) um demiurgo semiótico? Não é o escritor aquele que ordena eventos e cria sentido onde antes havia caos? Não é ele que dá sentido e forma ao contigente (acaso)? Na tentativa de se igualar, a distância entre narrador e personagem parece crescer ainda mais. Embora ele acha que não viva para nada, tem uma profissão que é toda ela cheia de propósitos simbólicos, o que nos faz pensar que o "viver para nada" de Rodrigo está no nível metafórico, enquanto Macabéa tem medo de pensar sobre isso. Por fim, no final do romance, mais uma vez temos o choque entre as linguagens metafóricas e literais: O narrador empatiza com a morte de Macabéa, e diz também morrer com ela. A morte dela, claro, é literal, enquanto a dele, é simbólica.
A ficção de Lispector, sobretudo a da primeira fase, é marcada por uma transbordante riqueza metafórica. São textos nos quais as ações são mínimas, e por isso dependem tanto da mobilização de outros campos semânticos: para emprestar densidade aquele mínimo de ação descrito na ficção. O exemplo paradigmático seria A Paixão segundo GH. Em tal romance, a narradora, depois de despedir a empregada, resolve fazer uma limpeza no cômodo que pertencia à empregada. Nessa limpeza, depara-se com uma barata moribunda. E a partir dessa visão epifânica, o romance se desenvolve. O romance é sobre uma personagem-narradora que a partir dessa experiência de contato íntimo como uma barata moribunda, examina-se e redefine-se. Tudo isso acontece por meio da linguagem, a partir das inúmeras camadas de significado que ela consegue criar a partir daquele singelo evento. E o romance consegue abarcar essas dimensões porque é uma ficção ancorada na metáfora.
Acabamos de analisar alguns casos
Creio que a discussão desse abismo entre narrador e personagem pode ser beneficiada se levarmos em consideração uma interessante reflexão do sociólogo Pierre Bourdieu sobre a “universalidade” de certas experiências e certos discursos. Bourdieu afirma que a Crítica do Juízo de Kant seria um modelo de análise estética universal se por acaso as condições econômicas e sociais que possibilitavam uma elite fruir daquela análise também fosse universal:
Estou pronto a admitir que a estética de Kant seja verdadeira, mas apenas a título de fenomenologia da experiência estética de todos os homens e mulheres que são produtos da skholé. . . . A condição da universalização real desta possibilidade universal é, portanto, a universalização real das condições econômicas e sociais, quer dizer, da skholé, cuja monopolização por alguns confere a esses happy few o monopólio do universal (160).
Algo semelhante pode ser dito da literatura existencialista de Clarice Lispector, sempre tocada pela linguagem figurativa e metafórica. A condição “humana” dessa experiência, referida por uma linguagem específica, só será de fato humana – isto é, universal – quando as condições sócio-econômicas para essa experiência também sejam universalizadas. O abismo entre o narrador e Macabea, a descontinuidade entre suas experiências, é o responsável pela mudança abrupta do tipo de linguagem empregado para descrever os seus respectivos dilemas. Com o perdão da redundância de palavras, representa a fissura no universalismo da literatura universal no Brasil.
domingo, maio 18, 2008
Por que sou contra as cotas nas universidades
Há muitas maneiras de ser contra as cotas nas universidades: Há os que simplesmente negam a existência do racismo no Brasil (Ali Kamel), há o que defendem o paradigma macunaímaco de hibridismo cultural e racial como a grande originalidade do país, e que tal conquista do sincretismo brasileiro, com a crescente racialização das relações sociais, estaria assim sob ameaça de ser destruída (Yvonne Maggie). E há os que preferem uma abordagem jurídica, ressaltando que a Constituição Brasileira não permite esse tipo de discriminação, mesmo sendo ela positiva.
Minha objeção às cotas raciais se dará em termos mais pragmáticos. Pretendo mostrar como sua eficácia é limitada quando pensada a partir do contexto brasileiro, com dinâmicas sociais e étnicas tão distintas daquelas que originaram as políticas de ação afirmativa baseadas na raça (Estados Unidos). Para isso, farei uso de um livro insuspeito, pois escrito por Edward Telles, um sociólogo abertamente simpatizante das cotas, chamado Racismo à brasileira (Relume Dumará 2003).
Tendo à sua disposição inúmeros dados demográficos do Brasil, Telles, em capítulo sobre casamentos inter-raciais, chega à conclusão que os casamentos entre pessoas de diferentes etnias raramente acontecem na classe média, mas ocorrem em abundância entre os pobres (154). O sociólogo afirma textualmente que "a miscigenação do Brasil não é apenas uma ideologia. As taxas de união inter-racial são muito maiores no Brasil que nos Estados Unidos ou na África do Sul"(157). No capítulo sobre segregação residencial, os dados de Telles são ainda mais reveladores: quanto maior a renda de um negro, mais distante de brancos ele vive. Essa informação vai de encontro à representação que muitos têm de que a classe média seria mais tolerante racialmente, ou que uma vez o negro ascendesse socialmente, seria "branqueado" e passaria a integrar os bairros de classe média alta, habitado por brancos. Se os dados mostram um racismo evidente da classe média brasileira, por outro lado, os mesmos dados revelam que os mais pobres têm baixas taxas de segregação residencial. Nas favelas e bairros mais populares, pessoas de diferentes etnias convivem entre si, sendo esses lugares mais multi-raciais que os bairros de classe média.
Com essas informações em mente, como avaliar o impacto das políticas de cota racial?
Se as cotas tiverem como critério apenas a raça, ela privilegiará um segmento da classe média, aqueles de fenótipo "africano", que contando com recursos materiais, provavelmente já entrariam na universidade de qualquer jeito. Se as cotas tiverem como critério a raça e a renda, as políticas de cota racial passarão a fazer o contrário do que apregoam: ao invés de tratar "desigualmente os desiguais", passarão a tratar desigualmente os "iguais"(socialmente). Como vimos, é entre os pobres onde a miscigenação mais se desenvolveu. Será nas famílias pobres, portanto, que haverá o maior número de fenótipos e variações "cromáticas". Todos já ouvimos falar de casos de parentes em que um poderia ser considerado "negro" e o outro "branco", enquanto um terceiro seria "mulato". Segundo os dados demográficos que o livro de Telles traz, a probabilidade dessa "mistura" acontecer é muito maior entre os mais pobres do que na classe média. Imagine dois irmãos, ou dois primos, com fenótipos diferentes, habitantes de um bairro pobre. Embora ambos tenham recebido uma educação precária, um péssimo serviço de saúde e esgoto, além de terem sofrido de preconceitos por serem da periferia, um teria apoio para entrar na faculdade, e o outro não. Onde estaria a justiça social aí? Tratar dois pobres de maneira desigual não pode ser a saída resolver o problema da desigualdade social no Brasil.
Diante dos inúmeros desafios que a complexa dinâmica racial do Brasil impõe, cada vez parece mais claro que políticas de cotas sociais fariam muito mais sentido que a raciais. E que o racismo, manifestado na segregação residencial da classe média, não pode deixar de ser combatido. Para isso é preciso mais criatividade, e menos aderência às fórmulas prontasLinks:
Edward Telles webpage - http://www.soc.ucla.edu/people
Artigo da Yvonne Maggie - http://www.scielo.br/scielo
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