sábado, maio 26, 2007
BRASIL, UM PAÍS MESTIÇO (?)
O IBGE lançou um relatóro que analisava as tendências demográficas do Brasil nos últimos 60 anos (http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=892). Um dos números que chama a atenção é o aumento da população dita miscigenada do país. Em 1940, 63,4% da população se declarava branca. Esse número baixou para 53, 7% em 2000. Os negros eram 14,6% em 1940, e hoje 6,2% se declaram assim. E os pardos - a categoria intermediária - subiu de 21,2 % nos anos 40 para 38,5% (um aumento bastante substantivo).
As estatísticas ficam assim:
Cor 1940 2000
Branco 63,4 53,7
Preto 14,6 6,2
Pardo 21,2 38,5
Há duas hipóteses não-excludentes para explicar esse número.
1) Houve um aumento objetivo de "miscigenados", fruto de casamento inter-étnicos (aliás, essa é a explicação do IBGE).
2) Houve um aumento da percepção da população de seu estatuto intermediário. Cresceu-se assim uma "consciência mestiça", já que a pesquisa está ancorada na auto-declaração das pessoas.
Não se deve esquecer que a "ideologia" da democracia racial foi arquitetada durante o governo Vargas e a partir daí passou a ser a grande narrativa da cultura brasileira. Que a percepção tenha mudado, não seria um fato de se estranhar.
Se esse for o caso, esses dados levam a uma reflexão. A ideologia de um Brasil mestiço não é apenas um mito arquitetado pelas elites, mas é algo que é incorporado aos esquemas mentais da população.
Toda vez que se fala para um militante da racialização das relações sociais do Brasil que não há sob o ponto de vista da ciência a tal categoria chamada raça, eles dizem que na sociedade as pessoas operam com esse conceito, e como não se pode aparentemente combater essa utilização, é preciso empregá-la para combater o racismo. É preciso utilizar a espinha dorsal da discriminação (a lógica racista) para combatê-la.
Se você apresentar esse novo dado - a de que os brasileiros se vêem e se declaram cada vez mais como mestiços -, a resposta de bolso é: a "democracia racial", a ideologia odiosa que mascarou o violento racismo brasileiro tenta elidir a consciência de raça e estimula o "embraquecimento" da população negra. Ou seja, de acordo com os militantes, a população está percebendo "errado" as coisas. E graças à boa pedagogia desses mesmos militantes, eles passarão a perceber as coisas de modo correto, quando passarem a se assumir como negros e desse modo, assumirem o papel de protagonistas no combate ao racismo.
Eu poderia contra-argumentar, dizendo que há algo de incrivelmente arrogante nessa disposição de "intelectual-demiurgo", que guia os povos oprimidos à consciência real de si mesmo. Que tira o ignorante da caverna e mostra-lhe o mundo sensível do racismo e da opressão. Aí o militante sorriria - com aquele sorriso dos que pegam o interlocutor em contradição - e diria: e a democracia racial não foi construída por ideólogos e demiurgos que acharam que tal percepção não seria a correta e ideal para enxergar o Brasil?
Sim, é verdade. Mas aí a discussão entra em outro nível: o que há de necessariamente errado na idéia de um país mestiço, onde a raça não é levada em conta? Bem, pode-se dizer que a bela idéia não corresponde à tortuosa realidade, logo....dane-se a bela idéia. Talvez a idéia de um país mestiço e anti-racista seja a única utopia universal criada no Brasil, um país de tantos particularismos de classe. São valores universais e admiráveis que poderiam servir de antítodo a tantas distinções sociais, tantas divisões que nós criamos no mundo social. Claro que tais idéias acabaram legitimando, em alguns momentos de nossa história, práticas sociais que reproduziam nossa desigualdade social, nosso senso de hierarquia do "cada macaco em seu galho". Se isso for feito, deve ser denunciado e criticado, mas não se pode jogar o bebê com a água do banho. O argumento de que os ideais em torno da mestiçagem e do anti-racismo são falsos e odiosos porque servem pra "encobrir" o racismo, logo devendo-se descartar esse conjunto de ideais, é tão consistente quanto o argumento que descrê de qualquer possibilidade de credibilidade da esquerda porque Stálin matou milhões em nome do marxismo. Qualquer esquerdista diria que o que orienta seus valores não são a carnificina e a horrenda realidade produzida na União Soviética de Stálin, mas os ideais de justiça e equidade do socialismo.
Por que não perseguir os ideais de um mundo nao-racial no Brasil, mesmo sabendo que a realidade não é rósea - mas consciente também que a realidade também oferece exemplos interessantes de interpenetração racial e cultural? Por que não combater duramente o racismo com os instrumentos jurídicos que já temos (Lei Afonso Arinos) e lutar para aperfeiçoá-la ainda mais? Eu imagino, no final das contas, que esse é um grande debate sobre valores, sobre ideais norteadores - que não podem ser desmerecidos porque a realidade algumas vezes os desmente (como, diga-se de passagem, acontece com qualquer valor norteador).
Essa utopia de um mundo não-racializado deve ser entendido como um ideal, um norteador, e não como um modelo cognitivo de apreensão do real. Não se trata de dizer que o Brasil é uma democracia racial. Mas que o Brasil busca, luta e aspira a um mundo não-racializado. Que já fez muita coisa para abolir esses entraves e que, por fim, a utopia só se realizará quando tiver esteio social.
O IBGE lançou um relatóro que analisava as tendências demográficas do Brasil nos últimos 60 anos (http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=892). Um dos números que chama a atenção é o aumento da população dita miscigenada do país. Em 1940, 63,4% da população se declarava branca. Esse número baixou para 53, 7% em 2000. Os negros eram 14,6% em 1940, e hoje 6,2% se declaram assim. E os pardos - a categoria intermediária - subiu de 21,2 % nos anos 40 para 38,5% (um aumento bastante substantivo).
As estatísticas ficam assim:
Cor 1940 2000
Branco 63,4 53,7
Preto 14,6 6,2
Pardo 21,2 38,5
Há duas hipóteses não-excludentes para explicar esse número.
1) Houve um aumento objetivo de "miscigenados", fruto de casamento inter-étnicos (aliás, essa é a explicação do IBGE).
2) Houve um aumento da percepção da população de seu estatuto intermediário. Cresceu-se assim uma "consciência mestiça", já que a pesquisa está ancorada na auto-declaração das pessoas.
Não se deve esquecer que a "ideologia" da democracia racial foi arquitetada durante o governo Vargas e a partir daí passou a ser a grande narrativa da cultura brasileira. Que a percepção tenha mudado, não seria um fato de se estranhar.
Se esse for o caso, esses dados levam a uma reflexão. A ideologia de um Brasil mestiço não é apenas um mito arquitetado pelas elites, mas é algo que é incorporado aos esquemas mentais da população.
Toda vez que se fala para um militante da racialização das relações sociais do Brasil que não há sob o ponto de vista da ciência a tal categoria chamada raça, eles dizem que na sociedade as pessoas operam com esse conceito, e como não se pode aparentemente combater essa utilização, é preciso empregá-la para combater o racismo. É preciso utilizar a espinha dorsal da discriminação (a lógica racista) para combatê-la.
Se você apresentar esse novo dado - a de que os brasileiros se vêem e se declaram cada vez mais como mestiços -, a resposta de bolso é: a "democracia racial", a ideologia odiosa que mascarou o violento racismo brasileiro tenta elidir a consciência de raça e estimula o "embraquecimento" da população negra. Ou seja, de acordo com os militantes, a população está percebendo "errado" as coisas. E graças à boa pedagogia desses mesmos militantes, eles passarão a perceber as coisas de modo correto, quando passarem a se assumir como negros e desse modo, assumirem o papel de protagonistas no combate ao racismo.
Eu poderia contra-argumentar, dizendo que há algo de incrivelmente arrogante nessa disposição de "intelectual-demiurgo", que guia os povos oprimidos à consciência real de si mesmo. Que tira o ignorante da caverna e mostra-lhe o mundo sensível do racismo e da opressão. Aí o militante sorriria - com aquele sorriso dos que pegam o interlocutor em contradição - e diria: e a democracia racial não foi construída por ideólogos e demiurgos que acharam que tal percepção não seria a correta e ideal para enxergar o Brasil?
Sim, é verdade. Mas aí a discussão entra em outro nível: o que há de necessariamente errado na idéia de um país mestiço, onde a raça não é levada em conta? Bem, pode-se dizer que a bela idéia não corresponde à tortuosa realidade, logo....dane-se a bela idéia. Talvez a idéia de um país mestiço e anti-racista seja a única utopia universal criada no Brasil, um país de tantos particularismos de classe. São valores universais e admiráveis que poderiam servir de antítodo a tantas distinções sociais, tantas divisões que nós criamos no mundo social. Claro que tais idéias acabaram legitimando, em alguns momentos de nossa história, práticas sociais que reproduziam nossa desigualdade social, nosso senso de hierarquia do "cada macaco em seu galho". Se isso for feito, deve ser denunciado e criticado, mas não se pode jogar o bebê com a água do banho. O argumento de que os ideais em torno da mestiçagem e do anti-racismo são falsos e odiosos porque servem pra "encobrir" o racismo, logo devendo-se descartar esse conjunto de ideais, é tão consistente quanto o argumento que descrê de qualquer possibilidade de credibilidade da esquerda porque Stálin matou milhões em nome do marxismo. Qualquer esquerdista diria que o que orienta seus valores não são a carnificina e a horrenda realidade produzida na União Soviética de Stálin, mas os ideais de justiça e equidade do socialismo.
Por que não perseguir os ideais de um mundo nao-racial no Brasil, mesmo sabendo que a realidade não é rósea - mas consciente também que a realidade também oferece exemplos interessantes de interpenetração racial e cultural? Por que não combater duramente o racismo com os instrumentos jurídicos que já temos (Lei Afonso Arinos) e lutar para aperfeiçoá-la ainda mais? Eu imagino, no final das contas, que esse é um grande debate sobre valores, sobre ideais norteadores - que não podem ser desmerecidos porque a realidade algumas vezes os desmente (como, diga-se de passagem, acontece com qualquer valor norteador).
Essa utopia de um mundo não-racializado deve ser entendido como um ideal, um norteador, e não como um modelo cognitivo de apreensão do real. Não se trata de dizer que o Brasil é uma democracia racial. Mas que o Brasil busca, luta e aspira a um mundo não-racializado. Que já fez muita coisa para abolir esses entraves e que, por fim, a utopia só se realizará quando tiver esteio social.
sexta-feira, maio 25, 2007
Brasília
Brasília: avião-bélico
bombardeando concreto na planície,
desabrigando cariocas boêmios,
semeando solidões
no imenso cerrado
Mas a morena cor de jambo
passa na W3
-que só consigo rimar com burguês -
E desalinha toda opressão planificada
Da cidade avião.
Brasília: avião-bélico
bombardeando concreto na planície,
desabrigando cariocas boêmios,
semeando solidões
no imenso cerrado
Mas a morena cor de jambo
passa na W3
-que só consigo rimar com burguês -
E desalinha toda opressão planificada
Da cidade avião.
sexta-feira, maio 18, 2007
RECIFE
Declaração de um amor vagabundo pela cidade que me adotou.
Recife. Eu vi o mundo e ele começava pela Encruzilhada. Foi lá que conheci o Recife. O Recife da casa de meu avô. A Encruzilhada com sua alegria suburbuna. Vizinhos conversando à noitinha na calçada. Sorvete da Fri-Sabor passando na frente de casa. O mercado fétido do bairro, fui saber mais tarde, era considerado um dos mais limpos da cidade. Ah, Recife.
Recife. Quando Manuel Bandeira era menino viu uma moça bonita tomar banho "nuinha" no Rio Capibaribe, lá na altura da Caxangá. João Cabral se assustou ao perceber que havia um morto boiando no mesmo Rio. Eu via moça nua só no carnaval da Globo e a Caxangá pra mim é um corredor de ônibus infindável. Já não via mais o rio, nos meus tempos de criança. Eu ia pra Boa Viagem, onde, antes dos tubarões aparecerem, tomava-se muito banho por lá. Também por lá, a gente via os gringos com as moreninhas de peito de pitomba, andando de mãos dadas, na orla marítima. Ah, Recife.
Recife e seus bairros de nomes filosóficos. Para alcançar as Graças, é preciso que nós, Aflitos, morramos Afogados nas incertezas de nossa Encruzilhada existencial. Se Camus e Kafka fossem recifenses, morariam nos Aflitos. Se as putas arrependidas fossem ricas morariam na Madalena. Se os intelectuais fossem coerentes, viveriam na Torre (de Marfim). Precisamos criar mais um bairro: Isolados, ou Prédio Alto. Seríamos mais recifenses assim. Ah, Recife.
Recife tem morenas de todas as cores. Das morenas cor de leite às morenas jambo, há morenidade para todo gosto na terrinha de Gilberto Freyre. Há também as branquinhas, descendentes dos flamengos, que no entanto, torcem pelo "ixxport" e são de "ixxquerda". No Recife, somos todos de esquerda, inclusive os usineiros, como Bruno Maranhão. Recife é uma cidade de revolucionários. Fazemos uma revolução tão permanente que, mui dialeticamente, até os reaças entraram na onda. Ah, Recife!
Recife. Conde da Boa Vista. Capital mais africana do Brasil. Som alto. Locutores de lojas - no Recife tem muito disso - anunciando promoções da calcinha e sutiã. Recife: Rua da moeda - Mangue-beat e cheiro de maconha. Minha boemia esmagada pelo calvinismo tropical que pulsa nesse sangue instável. No meu Recife já não há mais puteiro como antigamente. Há os decadentes, na Visconde de Suassuna. As putas agora são on line. E dizem as boas línguas, elas até beijam. Ah, Resífilis.
Recife, Universidade Federal de Pernambuco. Laguinho da Universidade. Cada gota daquele lago é uma gota de lágrima de um sergipano melancólico como eu. O jardim da perdição, localizado entre o CFCH e o CAC, é o centro nevrálgico do lirismo universitário. Lá as arquitetas, artistas plásticas e jornalistas, com aquele charme de hippie de butique, atiçam as imaginações dos sociólogos revolucionários. Ah, o CFCH e suas discussões pseudo-filosóficas. Grandes amizades. Marx e Weber discutidos com tapioca e cafézinho na cantina do CFCH. Depois de muita prosa e tapioca, resolvemos os problemas do mundo. Mas não entendemos porque os meninos pedem dinheiro no estacionamento da faculdade. Ah, Recife.
Recife na parada de ônibus. Ceasa-Casa Amarela era o ônibus da utopia. Alguns diziam que essa linha nem sequer existia. Eu acreditava muito e ela às vezes aparecia pra mim. Recifense que é recifense tem muita fé e, como bom brasileiro, não desiste nunca. O Rio Doce-CDU era um ônibus patrocinado pelo Museu do Homem do Nordeste, pois simulava com todo rigor historiográfico o sofrimento dos escravos na travessia do navio negreiro. Cada viagem era um aprendizado. Recife também é cultura. Ah, Recife.
Recife. Cada parada num sinal é um suspense. Um medo. Um calafrio. O pedinte se aproxima. O vidro elétrico sobe. Quanta miséria, meu deus! Pra onde estamos indo? A luz verde acende. Primeira marcha. O estacionamento do shopping é logo ali. Preciso comprar o que mesmo? Recife e seus orgulhos cheios de relevância: temos o maior shopping da América Latina. E, claro, também temos a maior avenida em linha reta do mundo. A gloriosa Caxangá. Recife capital da megalomania: o Capibaribe e o Beberibe se encontram pra formar o oceano atlântico. Ah, e claro, Nova Iorque não passa de uma filial do bairro de Santo Antônio. Ah, Recife.
O mundo começa pelo Recife, é verdade. Mas também termina com ele. No Recife temos nosso apocalipse caótico e carnavelesco, alegre e violento, cheio de beleza e aberração.
E qual é sua versão:visão de Recife?
quinta-feira, maio 03, 2007
MARIA ANTONIETA
Há tempos queria falar de Maria Antonieta, o filme de Sofia Coppola, que foi fragorosamente vaiado em Cannes. Coppola tem se mostrado uma diretora de personalidade. Há os que gostam e os que odeiam seus filmes. Muitos reclamam da lentidão excessiva de sua narrativa. O que, a meu ver, não é um defeito, pois ela extrai a força imagética das cenas de maneira sutil. É difícil de perceber essa pujança imagética quando estamos entretidos com sub-enredos e diálogos cruciais. Às vezes, tão acostumados que estamos com dramas filmados, esquecemos que fazer um filme é contar uma história por meio de imagens. É preciso paciência para admirar o silêncio das cenas. No mais, a lentidão do filme tem uma função ainda mais eficiente que em Lost in Translation: em Maria Antonieta a vagareza das cenas transmite uma sensação de tédio que é inerente ao mundo narrado. Há uma sensação de letargia e inutilidade em todo aquele cerimonial repitido ad infinitum.
Feitas essas considerações "estílísticas", imagino como o filme mexeu com os franceses, sobretudo por se tratar de um filme : a)falado em inglês, b) cheios de liberdades "artísticas"(como as inserções musicais de rock), que certamente fizeram torcer o nariz de muitos adeptos da rigorosa historiografia e por fim, c)uma visão empática sobre Maria Antonieta, aquela anti-heroína da nação francesa.
Uma nação tem seus heróis e seus anti-heróis. Aqueles que precisamos admirar e os que precisamos odiar pra cultivar o nosso civismo. Não há dúvida alguma que Maria Antonieta faz parte do segundo grupo. Ela representa tudo que a França não gostaria de representar: o privilégio social, a alienação, a desfaçatez dos poderosos. Tudo que foi "destruído" com a revolução francesa (Claro que estamos falando no plano da ideologia, do discurso que as nações produzem e com os quais pretendem se auto-identificar. Há uma distância enorme entre discurso e prática, ideologia e realidade).
Muitos criticaram a falta de distanciamente e empatia do filme. Coppola se baseou numa biografia e toda vez que ela escrevia pra autora de tal biografia, elas terminavam os e-mails fazendo um "Salve a rainha", monstrando a admiração e fascinação que as duas tinham pela personagem. Independente das intenções apologéticas de Coppola, eu acredito que a força crítica do filme, se assim posso falar, está exatamente no ângulo empático que ela constrói pra narrar a vida de Maria Antonieta.
Convenhamos: criticar Maria Antonieta é bater em cavalo morto. Muito mais ousado é elogiá-la. Ou ainda: muito mais interessante é aproximá-la de nós (as inserções de rock nada mais são do que estratégias de atualização daquele mundo, e servem para criar ainda mais empatia entre nós e Maria Antonieta). Assistindo ao filme, não pude deixar de lembrar de minhas alunas californianas (e outras pernambucanas) que resolvem qualquer "problema existencial" comendo chocolate e comprando mais sapatos. Maria Antonieta faz tudo isso para animar sua vida um tanto tediosa de Versailles. Mas como não se recordar de nossos tempos, quando o consumismo desenfreado virou a grande terapia existencial?
Alguém poderia dizer que a Revolução Francesa e a tão propalada modernidade serviram pra isso: pra "universalizar" marias-antonietas. O que antes era privilégio de uma diminuta classe social, agora virou padrão da cultura de massa. Todos agora somos burgueses e vivemos melhor que os Bourbons. Outro alguém poderia talvez lembrar que a relação atual entre alienação e consumismo assume padrões muito semelhantes àqueles que no filme são associados ao Antigo Regime. Ao aproximar a câmara de Maria Antonieta, ao adotar o seu ponto de vista e torná-lo mais "humano" e palatável, Coppola mostra que o Antigo Regime talvez não esteja tão distante da gente.
Temo, no entanto, do jeito que as coisas andam que a identificação entre nós e Maria Antonieta leve mais a uma atitude indulgente em relação à figura da rainha da França do que a uma auto-crítica de nossas posturas consumistas e alienantes.
Há tempos queria falar de Maria Antonieta, o filme de Sofia Coppola, que foi fragorosamente vaiado em Cannes. Coppola tem se mostrado uma diretora de personalidade. Há os que gostam e os que odeiam seus filmes. Muitos reclamam da lentidão excessiva de sua narrativa. O que, a meu ver, não é um defeito, pois ela extrai a força imagética das cenas de maneira sutil. É difícil de perceber essa pujança imagética quando estamos entretidos com sub-enredos e diálogos cruciais. Às vezes, tão acostumados que estamos com dramas filmados, esquecemos que fazer um filme é contar uma história por meio de imagens. É preciso paciência para admirar o silêncio das cenas. No mais, a lentidão do filme tem uma função ainda mais eficiente que em Lost in Translation: em Maria Antonieta a vagareza das cenas transmite uma sensação de tédio que é inerente ao mundo narrado. Há uma sensação de letargia e inutilidade em todo aquele cerimonial repitido ad infinitum.
Feitas essas considerações "estílísticas", imagino como o filme mexeu com os franceses, sobretudo por se tratar de um filme : a)falado em inglês, b) cheios de liberdades "artísticas"(como as inserções musicais de rock), que certamente fizeram torcer o nariz de muitos adeptos da rigorosa historiografia e por fim, c)uma visão empática sobre Maria Antonieta, aquela anti-heroína da nação francesa.
Uma nação tem seus heróis e seus anti-heróis. Aqueles que precisamos admirar e os que precisamos odiar pra cultivar o nosso civismo. Não há dúvida alguma que Maria Antonieta faz parte do segundo grupo. Ela representa tudo que a França não gostaria de representar: o privilégio social, a alienação, a desfaçatez dos poderosos. Tudo que foi "destruído" com a revolução francesa (Claro que estamos falando no plano da ideologia, do discurso que as nações produzem e com os quais pretendem se auto-identificar. Há uma distância enorme entre discurso e prática, ideologia e realidade).
Muitos criticaram a falta de distanciamente e empatia do filme. Coppola se baseou numa biografia e toda vez que ela escrevia pra autora de tal biografia, elas terminavam os e-mails fazendo um "Salve a rainha", monstrando a admiração e fascinação que as duas tinham pela personagem. Independente das intenções apologéticas de Coppola, eu acredito que a força crítica do filme, se assim posso falar, está exatamente no ângulo empático que ela constrói pra narrar a vida de Maria Antonieta.
Convenhamos: criticar Maria Antonieta é bater em cavalo morto. Muito mais ousado é elogiá-la. Ou ainda: muito mais interessante é aproximá-la de nós (as inserções de rock nada mais são do que estratégias de atualização daquele mundo, e servem para criar ainda mais empatia entre nós e Maria Antonieta). Assistindo ao filme, não pude deixar de lembrar de minhas alunas californianas (e outras pernambucanas) que resolvem qualquer "problema existencial" comendo chocolate e comprando mais sapatos. Maria Antonieta faz tudo isso para animar sua vida um tanto tediosa de Versailles. Mas como não se recordar de nossos tempos, quando o consumismo desenfreado virou a grande terapia existencial?
Alguém poderia dizer que a Revolução Francesa e a tão propalada modernidade serviram pra isso: pra "universalizar" marias-antonietas. O que antes era privilégio de uma diminuta classe social, agora virou padrão da cultura de massa. Todos agora somos burgueses e vivemos melhor que os Bourbons. Outro alguém poderia talvez lembrar que a relação atual entre alienação e consumismo assume padrões muito semelhantes àqueles que no filme são associados ao Antigo Regime. Ao aproximar a câmara de Maria Antonieta, ao adotar o seu ponto de vista e torná-lo mais "humano" e palatável, Coppola mostra que o Antigo Regime talvez não esteja tão distante da gente.
Temo, no entanto, do jeito que as coisas andam que a identificação entre nós e Maria Antonieta leve mais a uma atitude indulgente em relação à figura da rainha da França do que a uma auto-crítica de nossas posturas consumistas e alienantes.