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sábado, dezembro 23, 2006


NOTAS SOBRE A SAUDADE DO ESCRAVO NA CULTURA BRASILEIRA - III
§4



Que consequências podem ser extraídas da cultura política de um de uma nação cuja sociedade é construída a partir de uma retórica do afeto? O afeto tem sua volubilidade. Ou como diria Sergio Buarque, no seu Raízes do Brasil, a cordialidade é uma via de mão dupla (160-165). Cordial vem do latim cordis, que quer dizer coração. O fundo emotivo do coração pode produzir tanto o afeto como o ódio. O carinho ou a violência. A empatia de quase pertencer a família, ou as prerrogativas de classe que levam a distinção social do “sabe quem está falando”. Todas essas ambivalências são inerentes a um mundo político baseado no afeto, longe do contrato social e da cultura normativa.


Num trecho acima citado de Minha formação, Nabuco afirma que os negros não desconfiavam que pudessem ter algum direito, em contrapartida de algum dever dos proprietários. Nabuco constata a carência desse contrato, de um mundo regulado pela lei que poderia proteger o escravo do capricho senhorial. Mas não desenvolve nenhum raciocínio que denuncie a urgência e necessidade dessa cultura normativa. Pelo contrário, confia na própria bondade e doçura do escravo para resolver essa questão. Seria devido a essa ternura do escravo, disposto a dar o seu perdão, que o Brasil se salvaria de problemas maiores – o grande talião da história. Mesmo constatando o problema, Nabuco fica cego às suas implicações maiores e desvia seu pensamento para um ponto-de-fuga sentimental. Luiz Costa Lima e Italo Moriconi enfatizam que o tom sentimental surge em Nabuco exatamente quando o seu pensamento crítico embota. Algo semelhante ocorre com Gilberto Freyre, que escreve páginas penetrantes sobre a violência causada pela assimetria de poder entre senhores e escravos, mas que ao final de suas considerações, considera a confraternização entre opostos sociais algo mais importante de ser considerado do que as possível violência entre eles. É como se a retórica do afeto sempre obscurecesse a crítica mais radical a uma sociedade sem cidadania. Ou, como se o afeto entre raças e classes, pudesse de algum modo substituir a cidadania.


Hoje em dia já não acalentamos utopias de integração social. Parecemos viver mais o enredo de Cidade de Deus de Paulo Lins do que a narrativa conciliadora de Casa-grande & senzala. Diante de uma sociedade incrivelmente desigual e violenta, não há retórica de harmonia social que resista...No entano, continuamos vivendo sob o domínio dos afetos e das emoções. Mas o afeto agora é outro. Já não é mais construtivo. Continuamos emotivos, mas num outro contexto social. Agora nos revoltamos contra esse pobre que nos rouba. Temos medo do pária que nos cerca nas rua e ódio daquele que nos agride. Nosso fascismo de classe média não seria o reverso da moeda de nosso "afeto" pelos pobres? Nos dois casos, reconhecemos a inexistência de cidadania desse outro. Nos dois casos, agimos com a força de nossas distinções sociais, ora para sermos paternalistas e protetores, ora para sermos detentores de nossos privilégios.

quarta-feira, dezembro 13, 2006


NOTAS SOBRE A SAUDADE DO ESCRAVO NA CULTURA BRASILEIRA - II
§2


Nabuco é considerado um precursor de Gilberto Freyre. Sobretudo no que diz respeito à separação entre raça e cultura. Com refinada capacidade analítica, Nabuco havia reconhecido no seu O Abolicionismo que “o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro”(143).Um dos grandes temas de Casa-grande & senzala será essa separação delineada por Nabuco. O que poucos críticos reconhecem, no entanto, é que a influência de Nabuco sobre Freyre perpassa a separação entre raça e cultura. A saudade do escravo será também o grande tema da obra de Gilberto Freyre. Com uma grande diferença: em Casa-grande & senzala, o tema não terá as cores envergonhadas e tímidas que dão tom às confissões do Nabuco de Minha formação. Pelo contrário, Freyre fará do afeto entre raças a grande argamassa da cultura brasileira. O que antes era dito na esfera privada, nos relatos memorialísticos (Romero e Nabuco) e que parecia ir de encontro à posição pública desses intelectuais, com a obra de Freyre tal barreira será destruída. O afeto entre raças produzia aquilo que melhor havia no país: a mestiçagem, a interpenetração de culturas, a sociedade não-racista. E todos esses aspectos eram celebrados como verdadeiros sustentáculos civilizacionais do Brasil.

Para termos uma idéia de como a “saudade do escravo” será expandida na obra de Freyre, vejamos um parágrafo de introdução ao quarto capítulo de Casa-grande & senzala, capítulo esse que trata da influência do negro na formação da cultura brasileira:

Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de genipapo e mancha mongólica no Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta do indígena e do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande do Sul, e em Minas Gerais, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano.

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo ( 301).

O intuito é descrever a influência africana em “todo brasileiro”. Mas já no segundo parágrafo, fica claro que o brasileiro a que Freyre se refere é um brasileiro branco, nascido na casa-grande e a “influência africana” é a da mulher africana em contato com esse homem branco. Enquanto Romero timidamente relembrava do contato quase maternal de Antonia, sua mucama, Freyre faz menção a todas experiências afetivas existentes entre o homem branco e a escrava africana, dos cuidados maternais na infância à relação erótica da vida adulta. Importante notar que a narrativa do trecho está toda em primeira pessoa do plural, o que é significativo. Não se trata apenas do emprego majéstico, mas da rememoração de uma experiência geracional. Freyre publicara seu livro em 1933, numa época em que o Brasil ainda era um país eminentemente rural. Não seria errado supor que boa parte da classe letrada, que lia Freyre àquela época, houvesse tido uma socialização primária no Brasil agrário e, de fato, pudesse identificar-se com aquelas experiências descritas por Freyre.

Ainda tratando da influência do escravo na sociedade brasileiro, Freyre analisa a separação entre língua escrita e língua oral no Brasil. E atribui ao escravo a riqueza oral da língua portuguesa falada no Brasil:

“Faça-me”, é o senhor falando; o pai; o patriarca; “me dê” é o escravo, a mulher, o filho, a mucama. Parece-nos justo atribuir em grande parte aos escravos, aliados aos meninos das casas-grandes, o modo brasileiro de colocar pronomes. Foi a maneira filial, e meio dengosa, que eles acharam de se dirigir ao pater familias. . . Seguirmos só o chamado “uso português”, considerando ilegítimo o “uso brasileiro”, seria absurdo. . . seria ficarmos com um lado morto; exprimindo só metade de nós mesmos. Não que no brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro (343,344).

Novamente os sentimentos de doçura e meiguice estão associados ao escravo. Foi o escravo que amoleceu a rígida colocação dos pronomes do português continental, imprimindo um tom lento e carinhoso ao português falado no Brasil, cujo resultado é “uma das falas mais doces desse mundo” (340). Todas essas contribuições africanas ao português falado no Brasil estão no domínio do afetivo. É curioso observar como Freyre desenvolve o seu argumento: esse carinho e doçura do escravo servem como fermento para a idéia de metades culturais fraternizantes que se interpenetram, formando a “cultura brasileira”.

E por fim, Freyre discorre sobre outra grande qualidade trazida pelo africano ao Brasil: a alegria. A alegria foi, para o autor de Casa-grande & senzala o grande antídoto contra a melancolia portuguesa.

A risada do negro é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em que se foi abafando a vida nas casas-grandes. Ele que deu alegria ao são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi, o os cavalos-marinhos, os carnavais. As festas de Reis. . . . Nos engenhos, tanto nas plantações como dentro de casa, nos tanques de bater roupa, nas cozinhas, lavando roupa, enxugando prato, fazendo doce, pilando café; nas cidades, carregando sacos de açúcar, pianos, sofás de jacarandá de ioiôs brancos – os negros trabalharam sempre cantando: seus cantos de trabalhao, tanto quanto os de xangô, os de festa, os de ninar menino pequeno, encheram de alegria africana a vida brasileira (461).

Bondoso, doce, carinhoso, informal e alegre – são essas características imputadas ao escravo africano no Brasil. Características que foram apontadas inicialmente por Nabuco, na descrição de sua “saudade de escravo”, e que foram expandidas, para serem mais bem exaltadas, pela retórica nacionalista de Casa-grande & senzala. Se atentarmos bem para o argumento de Freyre, perceberemos que essas características são também válidas para descrever o povo brasileiro. Afinal, o que diferenciaria o jeito de ser brasileiro do português? O falar brasileiro da norma portuguesa? Toda a diferença é explicada pela presença e contribuição do africano no Brasil.


§3

Freyre faz da “saudade do escravo” a argamassa de toda uma cultura nacional. As qualidades que Nabuco imaginava ser do escravo, passivo mas doce, passam a ser consideradas as grandes qualidades distintivas nacionais: a informalidade, a simpatia, a alegria.

O antropólogo Peter Fry descreveu em artigo a experiência de fazer uma feijoada em Nova Iorque para colegas norte-americanos negros. Depois de todo esforço de reunir os ingredientes e cozinhar a feijoada, Fry teve que ouvir de seu colega do Alabama que aquilo dali era soul food. Fry se perguntava: por que nos Estados Unidos essa é uma comida étnica enquanto nos Brasil a feijoada é o grande prato nacional? A resposta pode estar nessa brasilianização da cultura africana – que como vemos, é operada por Freyre. A feijoada, o samba são símbolos da nação brasileira e não apenas de uma etnia. Mais ainda: são símbolos da negociação cultural de duas metades antagônicas, que ao invés de lançar mão do talião da história, como temia Nabuco, preferiram cooperar. A força dessa ideologia é tão grande, que pode ser encontrada até em vozes inusitadas, como o do ministro da Cultura do governo Lula, Gilberto Gil. Em seu discurso de posse, em 2003, Gil fez as seguintes considerações:

E sobretudo temos de saber que recado o Brasil enquanto exemplo de convivência de opostos e de paciência com o diferente deve dar ao mundo, num momento em que discursos ferozes e estandartes bélicos se ouriçam planetariamente. E, aqui, o Brasil tem lições a dar apesar do que querem dizer certos representantes de instituições internacionais e seus porta-vozes internos que, a fim de tentar expiar suas culpas raciais, esforçam-se para nos enquadrar numa moldura de hipocrisia e discórdia, compondo de nossa gente um retrato interessado e interesseiro, capaz de convencer apenas a eles mesmos. Sim: o Brasil tem lições a dar, no campo da paz e em outros, com as suas disposições permanentemente sincréticas e transculturativas. E não vamos abrir mão disso. (Gil, 2003, sem página).

O Brasil teria exemplos a dar ao mundo no campo da paz, por saberem seus habitantes, em decorrência das disposições sincréticas e transculturativas, conviver harmoniosamente, mesmo quando situados em posições opostas do espectro social. Que Gilberto Gil, um intelectual negro, ministro de um governo de esquerda, assuma tal discurso, não deixa de ser inusitado e mostra a força que essa ideologia – que é estruturada a partir da “saudade do escravo” da geração de Nabuco – tem na cultura brasileira.
(continua)



sábado, dezembro 09, 2006


NOTAS SOBRE A SAUDADE DO ESCRAVO NA CULTURA BRASILEIRA - I


No início de agosto deste ano, quando estava em Lisboa, recebi a notícia da morte de Mira. Mira foi uma das minhas primeiras babás. Havia sido babá de meu pai e era uma dessas empregadas que se tornou "parte da família". A morte dela muito me abalou. Lembrei da minha infância, das férias na Encruzilhada, onde Mira fazia pipoca e contava histórias do passado pra mim. Uma certa melancolia, um certo sentimento de culpa apoderou-se de mim. Por essas e outras, lembrei dos testemunhos de Nabuco e Silvio Romero sobre as suas "Miras". Nabuco somos nós. Sofreremos do mal de Nabuco e da saudade do escravo até o o dia em que resolvermos os terríveis problemas que até hoje a escravidão nos legou.


§1

Entre 1888, ano da Abolição da escravatura, e 1933, ano da publicação de Casa-grande & senzala, o tema da escravidão desapareceu da pauta de discussão na esfera pública brasileira. A questão racial estava ainda na ordem do dia, mas com outra moldura. Os conservadores lançavam mão de uma sociologia naturalista que condenava a presença africana no Brasil e não mediam esforços para promover políticas de embranquecimento da população brasileira. Os intelectuais negros, que haviam lutado pela Abolição, não tratavam da questão do cativeiro para não serem acusados de adotar uma retórica vitimizadora. O momento era de esquecer a violência da escravidão. Nada simbolizaria mais essa vontade de esquecimento do passado do que a queima, no dia 13 de maio de 1893, das matrículas dos escravos. A queima, hoje tão lamentada por historiadores, foi ordenada pelo então ministro Rui Barbosa e tinha uma justificativa cívica: a partir daquele dia, não haveria documentos que constrangessem cidadãos brasileiros, lembrando-os que foram escravizados por outros cidadãos.

É nesse contexto de silêncio e interdição em relação à escravidão que Joaquim Nabuco publica Minha formação, seu livro de memórias, em 1900. Nabuco havia sido um dos líderes mais atuantes do movimento abolicionista. Natural que no livro em que analisa os seus filões formativos, Nabuco tenha se defrontado com as razões que o levaram a engajar-se no combate à escravidão. A tomada de consciência da escravidão viria de um momento marcante de sua infância: quando um escravo fugido de outro engenho clama ao menino Nabuco para que seja seu novo dono, já que o outro era cruel e o castigava. Essa experiência teria mostrado ao autor de Minha formação a arbitrariedade dessa instituição, contra a qual, mais tarde, lutaria. Não obstante essas considerações acerca da violência da escravidão, o capítulo que trata das memórias de sua infância é permeado por uma mirada nostáligica em relação ao engenho Massangana. Algo bastante comum em livros de memória: recordar a tranquilidade das tardes do engenho Massangana, “respirando o aroma . . . das grandes tachas em que cozia o mel”(180), ou as noites “balsâmicas” do norte. No entanto, há em Minha formação um outro modo de saudade – que não é a da paisagem da infância. Trata-se da saudade do escravo:

Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também a minha alforria, dizer o meu nunc dimittis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo (184).

É certamente inusitado encontrar a “saudade do escravo” numa das figuras públicas que mais lutaram contra a escravidão no Brasil. Nabuco confessa essa saudade com um claro embaraço, como se essa nostalgia estivesse sabotando sua crença abolicionista – a ponto do próprio Nabuco achar que tal sentimento surpreenderia outros abolicionistas como os norte-americanos William Garrison e John Brown. Para Nabuco, a coexistência do saudosismo com a crítica à sociedade escravocrata é constrangedora, capaz de gerar nele uma grande sensação de desconforto.

O que viria a ser essa saudade do escravo? Seria a saudade de uma época e de uma ordem social, na qual senhores e escravos viviam em grande proximidade, numa relação afetuosa e cordata. O próprio Nabuco estava ciente que esse mundo – se é que um dia chegou a existir – já não havia mais, e que as relações entre senhores e escravos, sobretudo nos engenhos do Sudeste brasileiro, teriam se tornado impessoais e violentas. A saudade de Nabuco seria então a invenção de um passado que não pode ser mais restaurado. Algo muito semelhante pode ser encontrado na saudade do engenho, descrita por Sylvio Romero, em carta a João do Rio. Romero, que passou os melhores anos de sua infância no engenho do avô, credita a essa estadia o seu nativismo, o seu sentimento de brasilidade, e confessa que por anos a “saudade do engenho” torturou sua alma. Falando de sua mucama, Antonia, Romero faz essas considerações:

Devo isso [sentimento de religiosidade] à mucama de estimação, a quem foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha meninice. Ainda hoje existe, nonagenária, no Lagarto, ao lado de minha mãe, essa adorada Antonia, a quem me acostumei de chamar também de mãe. É um dos meus ídolos, dos mais recatados e mais queridos (39).

Seja essa saudade do engenho ou do escravo, note-se que “engenho” e “escravo” servem como metonímias de um mundo patriarcal e idílico, evocado por Romero e Nabuco para descrever essas relações afetuosas entre senhores e escravos, quase como pertencentes a uma grande família. Outro aspecto digno de nota é que numa época em que o tema da escravidão não era discutido na esfera pública, tanto no depoimento de Romero quanto nas memórias de Nabuco a escravidão aparece em seus relatos num veio sentimental, a partir de reminiscências de suas histórias privadas.

Apesar de serem intelectuais muito diferentes entre si, pode-se dizer que essa saudade do escravo, nutrida por Romero e Nabuco, era algo cultivado no âmbito meramente privado. Como já vimos, o reconhecimento da saudade do escravo causava em Nabuco, o abolicionista, uma sensação de embaraço. Já no que diz respeito a Sylvio Romero, o mesmo intelectual que se enternece ao lembrar de sua mucama, a quem considera um ídolo, será aquele que chamará a raça negra a mais degradada do globo. Era como se houvesse um hiato entre o intelectual público e o indivíduo,cujas memórias de infância eram doces e idílicas ao contato com a escravidão.

Uma vez descrita essa inusitada nostalgia, é necessário interpretá-la. Antonio Candido, em um texto sobre o radicalismo, faz uma distinção entre intelectuais radicais e intelectuais revolucionários. O primeiro grupo seria formado por aqueles que exerceriam uma crítica muitas vezes virulenta à ordem social com intuito de reformá-la. O segundo não teria compromissos conciliatórios e sua crítica só poderia se entendida como uma contribuição à mudança revolucionária do status quo. Candido cita Nabuco como exemplo de intelectual radical, que em alguns momentos de sua vida, sobretudo à época do movimento abolicionista, chegou a se posicionar frontalmente contra a sua classe.
No entanto, passada a Abolição, Nabuco se realinharia à ordem social. Não seria essa saudade do escravo, uma maneira de se reconciliar – ainda que de maneira sentimental, e repleta de complexos de culpa – com a classe social dos senhores? Convém analisar um trecho de Minha formação, no qual Nabuco elogia a bondade intrísceca ao escravo.

A gratidão estava ao lado de quem dava. Eles morreram acreditando-se devedores, o seu carinho não teria deixado germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação para com eles, que lhe pertenciam. . . Deus conservara ali o coração do escravo, como o de um animal fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação. Esse perdão espontâneo da dívida do senhor pelos escravos figurou-se-me a anistia para os países que cresceram pela escravidão, o meio de escaparem a um dos piores taliões da história (192).

Há nesse trecho uma retórica sentimental, repleta de culpa, projetanto bondade no escravo. Seria em decorrência do perdão do escravo, tão bondoso e carinhoso, que o Brasil escaparia dos “piores taliões da história”. O que seriam esses taliões? Deve-se lembrar que os políticos brasileiros tinham pavor da “solução haitiana”, no qual a elite criolla fora escorraçada pelos escravos. O talião da história, temido por Nabuco e afastado pelo “perdão” dos escravos, seria então o ódio entre raças e a possibilidade da elite branca perder o seu poder. A saudade do escravo, i. e., a crença nessa bondade do escravo e na sua disposição de viver harmoniosamente com os senhores, seria esse misto de racionalização de culpas históricas e tentativa de construção de uma comunidade imaginada. O limite da crítica radical de Nabuco estava no seu projeto de nação. Como grande admirador que era de Ernest Renan, Nabuco sabia que uma nação era formada não apenas pelo que os seus habitantes tinham em comum, mas também por aquilo que seus habitantes eram capazes de esquecer para permanecerem juntos. Era preciso esquecer todas as malignidades do sistema escravocrata, que Nabuco tão duramente havia denunciado em O Abolicionismo. Era preciso semear o perdão e o afeto entre as classes.




















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