terça-feira, outubro 31, 2006
SUA EXCELÊNCIA, O POVO
Lula ganhou. E ganhou de goleada. Quase dois terços dos brasileiros votaram nele. No dia seguinte, os tucanos lamentavam a derrota e buscavam explicações: "o povo estava mal informado". "O povo foi comprado pelo bolsa-família". "Trocaram o voto por um prato de comida", ou a melhor: "O projeto de Alckimin era muito complexo para o povo entender". O povo, coitado, sempre leva a culpa. O diagnóstico dos tucanos está errado, mas essa miopia não é monopólio das "direitas" raivosas (uso aspas para falar de direita e esquerda no Brasil. Hoje em dia Jader Barbalho, José Sarney, Delfim Netto, Severino Cavalcanti, Paulo Maluf, Inocêncio de Oliveira são "neoesquerdistas" e Roberto Freire, Cristovam Buarque, Fernando Gabeira, Jefferson Peres são "neoconservadores", entenderam? Por isso que as aspas são necessárias).
As esquerdas iluministas culparam muitas vezes o povo pela sua derrota. Não de forma direta, afinal ninguém o faz. A grande culpada era a mídia,sobretudo as Organizações Globo. Mas o povo, sem educação e sem espírito crítico, coitado, engolia todas embromações da "mídia" e servia de macaquinho amestrado do senhor Roberto Marinho. Hoje muita gente critica o diretor de Jornalismo da Rede Globo por considerar que seu "espectador típico" é um Homer Simpson (ou seja, alguém de capacidade intelectual muito mediana,que precisa ter as notícias "mastigadas" para ele numa linguagem acessível). Poucos se dão conta que eles mesmos também consideram o espectador da Globo um verdadeiro Homer, uma pessoa acrítica e completamente manipulável.Mas a eleição de 2006 também desmistificou isso. O povo não votou em decorrência dos apelos moralistas da mídia. Mas o mérito vai todo para Lula, "que ganhou apesar da mídia" e não para o povo, que votou conscientemente, porque acha que sua vida está boa e quer continuidade. O que também motivou o mesmo povo a votar em FH em 1998. Simples assim.
Não tem por onde correr, o povo será sempre culpado. E quem vai entender o povo, as massas, o povão? Eis um ente indecifrável. O intelectual de classe média lida com o povo de duas maneiras: ou o despreza solenemente, ou o romantiza até não poder mais. Vejam como Lula é tratado pela classe média: ou ele é o sapo barbudo, vagabundo analfabeto, ou ele é o próprio povo encarnado na sua sublime sabedoria e intuição. Essas são duas opções possíveis geradas por uma dinâmica de classe bastante cruenta, no qual mostramos ou nossas prerrogativas de classe pra nos distinguir do povão:"Eu não voto em quem tem menos escolaridade do que eu" ou expomos nosso sentimento de culpa:"Voto nele. Ele não teve as mesmas oportunidades que eu e é um vencedor, um líder!".
Pensemos num dos maiores ensaios da cultura brasileira: Os sertões de Euclides da Cunha. Os Sertões é um livro emblemático exatamente por ter como matéria principal o hiato que existe entre as classes letradas e o povo. No entanto, no livro, Euclides reproduz esse mesmo padrão volúvel para tratar com o popular. Ora trata o sertanejo com todo o preconceito que as teorias raciais lhe facultavam, ora o exalta a ponto de fazê-lo herói da nação, cimento da nacionalidade brasileira. Está sempre oscilando, tal como um pêndulo, entre o elogio e o menoscabo. Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, outro clássico do ensaísmo brasileiro, faz altos elogios ao negro. Considera-o verdadeiro colonizador brasileiro. Chegou a dizer que é um livro negrófilo. Mas reverencia o negro, colocando-o em seu "devido lugar". Numa cultura cuja riqueza está no equilíbrio entre antagonismos entre senhores e escravos, doutores e analfabetos, cultura letrada e popular, sádicos e masoquistas, haverá sempre necessidade para ter pessoas que fiquem no segundo pólo do antagonismo. E esse pólo cabe ao povo que no caso de Freyre é elogiado para ser devidamente rebaixado.
E hoje continuamos oscilando entre esses mesmos pólos. Ora queremos fascistamente eliminar o povinho,(nos segregando em carros com vidro fumê e em mansões em condomínios fechados), ora queremos tutelá-lo cheio de boas intenções.
Enquanto vivermos no país de pior distribuição de renda do mundo, esse será o nosso drama e tragédia.
Lula ganhou. E ganhou de goleada. Quase dois terços dos brasileiros votaram nele. No dia seguinte, os tucanos lamentavam a derrota e buscavam explicações: "o povo estava mal informado". "O povo foi comprado pelo bolsa-família". "Trocaram o voto por um prato de comida", ou a melhor: "O projeto de Alckimin era muito complexo para o povo entender". O povo, coitado, sempre leva a culpa. O diagnóstico dos tucanos está errado, mas essa miopia não é monopólio das "direitas" raivosas (uso aspas para falar de direita e esquerda no Brasil. Hoje em dia Jader Barbalho, José Sarney, Delfim Netto, Severino Cavalcanti, Paulo Maluf, Inocêncio de Oliveira são "neoesquerdistas" e Roberto Freire, Cristovam Buarque, Fernando Gabeira, Jefferson Peres são "neoconservadores", entenderam? Por isso que as aspas são necessárias).
As esquerdas iluministas culparam muitas vezes o povo pela sua derrota. Não de forma direta, afinal ninguém o faz. A grande culpada era a mídia,sobretudo as Organizações Globo. Mas o povo, sem educação e sem espírito crítico, coitado, engolia todas embromações da "mídia" e servia de macaquinho amestrado do senhor Roberto Marinho. Hoje muita gente critica o diretor de Jornalismo da Rede Globo por considerar que seu "espectador típico" é um Homer Simpson (ou seja, alguém de capacidade intelectual muito mediana,que precisa ter as notícias "mastigadas" para ele numa linguagem acessível). Poucos se dão conta que eles mesmos também consideram o espectador da Globo um verdadeiro Homer, uma pessoa acrítica e completamente manipulável.Mas a eleição de 2006 também desmistificou isso. O povo não votou em decorrência dos apelos moralistas da mídia. Mas o mérito vai todo para Lula, "que ganhou apesar da mídia" e não para o povo, que votou conscientemente, porque acha que sua vida está boa e quer continuidade. O que também motivou o mesmo povo a votar em FH em 1998. Simples assim.
Não tem por onde correr, o povo será sempre culpado. E quem vai entender o povo, as massas, o povão? Eis um ente indecifrável. O intelectual de classe média lida com o povo de duas maneiras: ou o despreza solenemente, ou o romantiza até não poder mais. Vejam como Lula é tratado pela classe média: ou ele é o sapo barbudo, vagabundo analfabeto, ou ele é o próprio povo encarnado na sua sublime sabedoria e intuição. Essas são duas opções possíveis geradas por uma dinâmica de classe bastante cruenta, no qual mostramos ou nossas prerrogativas de classe pra nos distinguir do povão:"Eu não voto em quem tem menos escolaridade do que eu" ou expomos nosso sentimento de culpa:"Voto nele. Ele não teve as mesmas oportunidades que eu e é um vencedor, um líder!".
Pensemos num dos maiores ensaios da cultura brasileira: Os sertões de Euclides da Cunha. Os Sertões é um livro emblemático exatamente por ter como matéria principal o hiato que existe entre as classes letradas e o povo. No entanto, no livro, Euclides reproduz esse mesmo padrão volúvel para tratar com o popular. Ora trata o sertanejo com todo o preconceito que as teorias raciais lhe facultavam, ora o exalta a ponto de fazê-lo herói da nação, cimento da nacionalidade brasileira. Está sempre oscilando, tal como um pêndulo, entre o elogio e o menoscabo. Gilberto Freyre em Casa-grande & senzala, outro clássico do ensaísmo brasileiro, faz altos elogios ao negro. Considera-o verdadeiro colonizador brasileiro. Chegou a dizer que é um livro negrófilo. Mas reverencia o negro, colocando-o em seu "devido lugar". Numa cultura cuja riqueza está no equilíbrio entre antagonismos entre senhores e escravos, doutores e analfabetos, cultura letrada e popular, sádicos e masoquistas, haverá sempre necessidade para ter pessoas que fiquem no segundo pólo do antagonismo. E esse pólo cabe ao povo que no caso de Freyre é elogiado para ser devidamente rebaixado.
E hoje continuamos oscilando entre esses mesmos pólos. Ora queremos fascistamente eliminar o povinho,(nos segregando em carros com vidro fumê e em mansões em condomínios fechados), ora queremos tutelá-lo cheio de boas intenções.
Enquanto vivermos no país de pior distribuição de renda do mundo, esse será o nosso drama e tragédia.
quarta-feira, outubro 25, 2006
QUEM TEM MEDO DE CLARICE LISPECTOR ?
- Não é possível viver uma vida correta na falsa. Theodor Adorno
Outro dia desses estava folheando Laços de Família, famoso livro de Clarice Lispector e deparei-me com um conto chamado Amor - que aliás é o primeiro do livro. Lá se encontra condensado toda uma tendência clariceana: a de questionar o mito romântico da mulher-família. Explico. Resumindo o conto de modo superficial, pode-se que dizer que o texto trata de um dia na vida de Ana, essa dona de casa exemplar, mãe amorosa, esposa fiel. Ana vive com muita dedicação o seu papel de dona de casa, mãe e esposa. Um dia ela vê uma cena, que a faz perceber, por um instante, que "a vida sadia que levava" até então "parecia-lhe um modo moralmente louco de viver". A heroína entra em crise, e analogamente, o seu mundo também entra em crise.
As implicações desse conto são vários. Primeiro, algo digno de nota, ao contrário de um Rubem Fonseca, que narra um mundo decaído, com personagens cínicos e abjetos, ou mesmo de Nelson Rodrigues, obcecado com as disfunções da família brasileira (bizarrices, pedofilia, pederastia, incestos, etc), Clarice escolhe um mundo (quase) perfeito. Clarice propõe a seu leitor: vou construir, através da imaginação, esse mundo ideal para a maioria das minhas leitoras. E o mundo ideal para as suas leitoras femininas de então era um bom casamento, filhos, um bom lar...todas as convenções pequeno-burguesas de felicidade e comunhão com a ordem social. No entanto, algo se passa com Ana. Num momento de epifania ela percebe que seu mundo gira em falso. Que aquele mundo e aquelas convenções estão muito aquém do que poderiam ser. Fenômeno semelhante ocorrerá com Joana, personagem principal do seu romance de estréia Perto do coração selvagem, e com outras personagens da contística clariceana. Mulheres de classe média alta que se vêem em crise diante da vida amorfa e vazia que levam. Diante da crise de uma "identidade feminina", sempre ligada à guarida do lar. Aqui temos a ficção a serviço do pensamento contra-intuitivo, da desconstrução pertinente de representações sociais cristalizadas, e do questionamento da posição da mulher no mundo moderno. Soluções? Essas ficam para os livros de auto-ajuda. A literatura moderna é quase sempre marcada pela negatividade. Ela denuncia e critica as formas esclerosadas de vida. Quanto a construir uma alternativa, isso não cabe à literatura. Cabe aos homens (e às mulheres), à política, aos sonhos, às utopias. Para reinvenções não há receita retórica.
- Não é possível viver uma vida correta na falsa. Theodor Adorno
Outro dia desses estava folheando Laços de Família, famoso livro de Clarice Lispector e deparei-me com um conto chamado Amor - que aliás é o primeiro do livro. Lá se encontra condensado toda uma tendência clariceana: a de questionar o mito romântico da mulher-família. Explico. Resumindo o conto de modo superficial, pode-se que dizer que o texto trata de um dia na vida de Ana, essa dona de casa exemplar, mãe amorosa, esposa fiel. Ana vive com muita dedicação o seu papel de dona de casa, mãe e esposa. Um dia ela vê uma cena, que a faz perceber, por um instante, que "a vida sadia que levava" até então "parecia-lhe um modo moralmente louco de viver". A heroína entra em crise, e analogamente, o seu mundo também entra em crise.
As implicações desse conto são vários. Primeiro, algo digno de nota, ao contrário de um Rubem Fonseca, que narra um mundo decaído, com personagens cínicos e abjetos, ou mesmo de Nelson Rodrigues, obcecado com as disfunções da família brasileira (bizarrices, pedofilia, pederastia, incestos, etc), Clarice escolhe um mundo (quase) perfeito. Clarice propõe a seu leitor: vou construir, através da imaginação, esse mundo ideal para a maioria das minhas leitoras. E o mundo ideal para as suas leitoras femininas de então era um bom casamento, filhos, um bom lar...todas as convenções pequeno-burguesas de felicidade e comunhão com a ordem social. No entanto, algo se passa com Ana. Num momento de epifania ela percebe que seu mundo gira em falso. Que aquele mundo e aquelas convenções estão muito aquém do que poderiam ser. Fenômeno semelhante ocorrerá com Joana, personagem principal do seu romance de estréia Perto do coração selvagem, e com outras personagens da contística clariceana. Mulheres de classe média alta que se vêem em crise diante da vida amorfa e vazia que levam. Diante da crise de uma "identidade feminina", sempre ligada à guarida do lar. Aqui temos a ficção a serviço do pensamento contra-intuitivo, da desconstrução pertinente de representações sociais cristalizadas, e do questionamento da posição da mulher no mundo moderno. Soluções? Essas ficam para os livros de auto-ajuda. A literatura moderna é quase sempre marcada pela negatividade. Ela denuncia e critica as formas esclerosadas de vida. Quanto a construir uma alternativa, isso não cabe à literatura. Cabe aos homens (e às mulheres), à política, aos sonhos, às utopias. Para reinvenções não há receita retórica.
terça-feira, outubro 10, 2006
UM ANO DEPOIS - DEBATE SOBRE RACISMO
Faz um ano que não posto no blogue. Eu não lembrava nem mais da minha senha do blogger, para se ter uma idéia de como isso aqui andava abandonado. Mas cá estou eu de volta. Li na Folha de S. Paulo do dia 18 de outubro de 2006 uma enquete sobre a questão racial no Brasil colocada aos candidatos à presidência da república. A primeira pergunta versava sobre a existência do racismo no Brasil. E a segunda era sobre a adoção de políticas de cotas raciais (ou política de ação afirmativa) por parte de um eventual governo de Lula ou de Alckimin. Os dois dizem que irão adotar as tais cotas, o que aponta para mais uma tema em comum nas agendas de tucanos e petistas.
Vale a pena reler a resposta dos dois candidatos (ou de suas assessorias) para a pergunta: existe racismo no Brasil?
Lula
O Brasil não é um país racista, mas infelizmente ainda há discriminação e preconceito racial entre nós. Em 506 anos de história, mais de três séculos e meio foram de escravidão. E os escravos, após a abolição realizada há apenas 118 anos, ficaram entregues à própria sorte. Tudo isso de alguma forma ficou entranhado na nossa cultura. Somos um país no qual a convivência étnica é harmoniosa e o respeito à diversidade cultural é um exemplo. Há, no entanto, muito por fazer. Por isso no início do nosso governo criamos a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial com status de ministério, realizamos, em parceria com a sociedade civil, a 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial e promovemos ações afirmativas. No segundo mandato, vamos acelerar mais ainda a implementação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Alckmin
O povo brasileiro não é racista. Até por ser resultado de uma grande miscigenação de povos, é destituído de preconceitos raciais e culturais. Apesar disso, há uma enorme desigualdade. Essa desigualdade tem raízes no regime escravocrata que vigorou no Brasil por quase três séculos e foi abolido sem que se seguissem providências para a inclusão dos negros na sociedade. Por isso no Brasil grande parte dos negros tem baixa escolaridade, baixos salários, mais dificuldade de acesso aos empregos e más condições de moradia. A integração e a igualdade têm de ser alcançadas por uma luta permanente. Nesta luta, é vital a educação e o fortalecimento da identidade negra. Como governador de São Paulo, entre outras ações, criei programa que já capacitou centenas de docentes para o ensino da história e cultura afro-brasileira na rede pública estadual.
Choque retórico entre dois paradigmas
É interessante notar que os dois candidatos iniciam suas respostas com o velho lugar-comum do discurso oficial: Não, o Brasil não é um país racista. A miscigenação é prova disso, argumenta Alckimin. Nós somos exemplo de respeito à diversidade, reafirma Lula. No entanto, muito precisa ser feito no campo das relações raciais no Brasil, concluem os dois candidatos. As respostas dos dois candidatos é marcada por essa incongruência entre retórica celebratória e oficial de um país racialmente harmonioso e a emergência de um novo paradigma para entender as relações sociais. Novo paradigma este que mostra a existência de um Brasil bicolor e reivindica políticas de reparação para negros.
Geralmente esses discursos vêm separados, mas no Brasil eles coexistem na retórica dos candidatos à Presidência. De qualquer maneira, no assunto das políticas de ação afirmativa, os dois se mostram simpáticos à sua adoção e ampliação. Segundo esse artigo (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt) dos antropólgos Peter Fry e Yvonne Maggie, essa mudança de perspectiva dos políticos brasileiros iniciou-se na Conferência sobre o Racismo na África do Sul e está sendo concretizada agora. Segundo esses antropólogos, a mudança de paradigma ocorreu sem maiores discussões na sociedade civil e foi de cima para baixo. O artigo linkado mostra a reação dos leitores de O Globo diante da mudança de paradigma do governo brasileiro.
Independente de consideramos a validade ou não da política de ação afirmativa, algo de positivo está se passando: as pessoas estão discutindo a questão racial no Brasil. Claro que muitas vezes os termos dos debates ainda não são os ideias, e não poucas vezes, as discussões trazem mais calor do que luz à questão. Mas enfim, o debate está começando...
Existe racismo no Brasil?
Discutir essa questão é complicada. Até porque as polarizações do debate são evidentes. Existe um Fla X Flu muito grande. Desde já antecipo que não defendo a idéia de que exista uma democracia racial no Brasil. Aliás, nem o próprio Gilberto Freyre - como lembra o antropólogo Hermano Vianna - citou, uma única vez, tal termo em Casa-grande & senzala. Muitas vezes a idéia de democracia racial se tornou uma caricatura para ser malhada. A idéia de um país edênico onde não há tensões raciais ou sociais é tão ridícula, que é quase impossível não ser contra a tal disparate.
Mas a democracia racial virou um dos termos do debate. Ou você acredita que no Brasil existe racismo, ou você acredita em democracia racial. Fica-se mais ou menos nessa dicotomia.
Somos racistas? O racismo - e isso qualquer consulta ao Houaiss pode corroborar - pressupõe a idéia de superioridade racial. Pessoas que se consideram pertencentes a uma etnia (a identidade étnica e a consciência racial são elementos importantíssimas do racismo) , e que consideram que sua etnia é superior a uma outra etnia. Geralmente é uma naturalização de uma diferença estabelecida por relações de poder. Exemplos claros podem ser encontrados na história no sul dos Estados Unidos e, de maneira ainda mais radical, no apartheid da África do Sul. Brancos e negros iam para escolas diferentes, igrejas diferentes, bebiam água em lugares diferentes. Nenhuma confraternização era encorajada. Grupos se organizavam para violentar negros (considerados inferiores). Havia linchamento e perseguição. Isso é racismo. Políticas de ação afirmativa nasceram nesse contexto.
Isso posto, se pensarmos o conceito na sua dimensão mais elementar ( a idéia de superioridade de uma etnia em relação a outra) e na sua prática institucional (os casos norte-americanos e sul-africanos) podemos chegar à conclusão que no Brasil, o racismo nos seus moldes clássicos não existe.
Mas...mas...mas...
Mas que história é essa que o racismo no Brasil não existe? Quantos de nós já ouvimos histórias de preconceito, piadas racistas, pessoas próximas declarando abertamento juízos racistas...? Certamente essas manifestações existem, mas longe da moldura clássica dos casos americanos e sul-africanos. As diferenças são evidentes. A começar pela interpenetração cultural e étnica que ocorreu no Brasil - o que é um fato - o que levou a um contato entre culturas impensável nos EUA, por exemplo. Os grandes símbolos de nossa identidade cultural são o samba (estudado brilhantemente por Hermano Vianna) e a feijoada - que são produtos de uma intensa negociação e contato entre portugueses e africanos.
Então vivemos na sociedade idílica, sem preconceito racial e numa eterna paz social? Não, de maneira nenhuma. Porque a negação da manifestação do racismo nos seus moldes clássicos não é afirmação de uma democracia racial. Acho que temos muitos problemas. Mas nossos problemas são outros. A única coisa que advogo é um diagnóstico verdadeiro de nosso quadro social - e não a adoção de paradigmas prét-a-porter erigidos em outras dinâmicas sociais - tão diferentes da nossa.
Como diria Joaquim Nabuco, a escravidão é a nódoa de nossa formação social. Boa parte de nossos problemas vêm da escravidão que deixou uma herança social e cultural das mais significativas. Uma herança ambivalente. Mas da mesma maneira que herdamos um país onde as negociações culturais são possíveis e onde há mulata é a tal, também vivemos num país extremamente violento e repleto de assimetrias.
Como lembra Roberto DaMatta(http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=105731&sid=2401971998726748832250025&k5=233D1C&uid= ), o Brasil é o país do "sabe quem está falando". Um país cartorial, onde um diploma universitário tem um status inacreditável. Um país de homens cordiais, onde o burocrata "dá um jeitinho" quando é seu amigo, e pode tornar sua vida desgraçadamente difícil quando é seu inimigo. Onde um policial militar ou um professor universitário podem exercer seu poder muito além daquilo que a lei prescreve. Onde empregadas domésticas (morenas, negras ou agaleguadas) são humilhadas por patrões que preferem viajar para Miami do que dar um aumento de salário. Um país onde existe elevador de serviço e elevador social. Nossa herança colonial viceja nesses pequenos detalhes do cotidiano. Isso é horrível. Isso é abjeto. Mas não creio que seja racismo. Não se trata, portanto, de uma questão meramente conceitual. Afinal, dependendo do diagnóstico, as política de combate serão outras. E as formas para combater esse lado extremamente negativo de nossa herança colonial pedem outras armas que aquelas usadas contra o racismo.
O que propõe o governo?
O governo propõe um Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e que já foi aprovado no Senado Federal. De acordo com esse Estatuto o Brasil as cotas raciais serão obrigatórias nas universidades e no serviço público. Mais: o então ministro da Educação Tarso Genro mandou ao Congresso um projeto que previa a classificação racial nas escolas. Crianças na escola primária teriam que declarar raça! Nos Estados Unidos isso não é um problema porque - lembremos - um dos componentes mais importantes do racismo é lembrar a identidade étnica todo o tempo. Você é lembrado de seu grupo étnico a cada passo que você dá. Seja pela escola que você frequenta, o hospital que você vai. Tudo segregado. Por que então colocar a raça - uma das categorias mais atrasadas já utilizadas para definir os homens - num contexto onde ela não é importante?
O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil?
O que se percebe na adoção das cotas por parte dos governantes brasileiros (tucanos e petistas) é a de mais uma vitória do imperialismo cultural norte-americano no Brasil. Sim, imperialismo cultural não é só McDonalds e Hollywood. Ou como diria Pierre Bourdieu, num excelente artigo sobre esse tema, os EUA conseguem com grande sucesso globalizar os seus problemas. O que é particular se torna universal. O que é problema doméstico passa a ser problema que deve ser combatido em todas as fronteiras. Instituições como a Fundação Ford financiam militantes da causa em universidades de muitos países, inclusive o Brasil. Militantes como Michael Hanchard (http://www.amazon.com/Orpheus-Power-Michael-George-Hanchard/dp/0691002703/sr=8-4/qid=1161467784/ref=sr_1_4/102-5904541-0225725?ie=UTF8&s=books) acreditam que o Movimento Negro americano deve ser o exemplo para o movimento negro brasileiro, como se as diñâmicas sociais fossem as mesmas.
Como falsas dicotomias nos cegam diante da realidade
O grande problema da discussão colocado pelos militantes da ação afirmativa no Brasil é que muitas vezes se coloca uma falsa dicotomia: ou você reconhece que existe racismo no Brasil, ou você está querendo encobrir a odiosa violência que nutre as relações sociais neste país. Será chamado de ideólogo da democracia racial e outros epítetos menos carinhosos.
Ora, não quero negar a violência abjeta que norteia nossas relações sociais. Só não acho que a lógica social que conduz essa violência seja a mesma que havia no Sul dos Estados Unidos. A lógica é outra e, acredito, muito provavelmente passe longe do racismo.
Vejamos algumas situações de nosso belo cotidiano.
1)Vários policiais (de várias matizes étnicas) humilham e maltratam várias "moleques" de rua, flagrados fazendo alguma coisa errada. Um dos policiais manda os meninos mergulharem no Rio Capibaribe ( o famoso rio do Recife). Um dos meninos que não sabe nadar, morre. Isso é um caso de racismo?
2)Um empresário paulista diz que vai fugir do Brasil caso um candidato nordestino, pouco educado, incapaz de acertar uma concordância verbal, sem diploma universitário, ganhar a presidência da República. Isso é racismo?
3)Um jogador de futebol é parado por policiais por dirigir uma BMW. O jogador é moreno. Os policiais também são. Isso é racismo?
Todas são situações espinhosas, onde a autoridade e as prerrogativas do "sabe quem está falando" são colocadas em evidência. Se isso é racismo -se isso mostra a retórica de superioridade de um grupo étnico sobre o outro, são outros quinhentos. Como se resolvem situações como essa? Será que o Tio Sam pode mandar algum manual pra ajudar a gente nesse tópico?
Eu acredito o Brasil precisa de políticas sociais que ajudem a colocar todos nossos irmãos brasileiros no exercício de sua cidadania plena e ativa. Essa é a única maneira de combater os desmandos de nossa herança colonial. O governo federal, por meio do ProUni, já está fazendo um trabalho admirável ao ajudar todos os brasileiros, sejam eles negros, indígenas, brancos, entrar na Universidade. A única exigência é ter estudado na escola pública. Espero que o governo siga essa linha, ao invés de adotar o Estatuto de Igualdade Racial. A racialização de nossas relações sociais seria um grande retrocesso.
UPDATE
Aqui segue na íntegra o manifesto contra o Estatuto de Igualdade Racial, assinado por vários intelectuais brasileiros
‘TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA’
“ O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da
República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio
encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas
(PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos
a uma decisão final no Congresso Nacional.
Faz um ano que não posto no blogue. Eu não lembrava nem mais da minha senha do blogger, para se ter uma idéia de como isso aqui andava abandonado. Mas cá estou eu de volta. Li na Folha de S. Paulo do dia 18 de outubro de 2006 uma enquete sobre a questão racial no Brasil colocada aos candidatos à presidência da república. A primeira pergunta versava sobre a existência do racismo no Brasil. E a segunda era sobre a adoção de políticas de cotas raciais (ou política de ação afirmativa) por parte de um eventual governo de Lula ou de Alckimin. Os dois dizem que irão adotar as tais cotas, o que aponta para mais uma tema em comum nas agendas de tucanos e petistas.
Vale a pena reler a resposta dos dois candidatos (ou de suas assessorias) para a pergunta: existe racismo no Brasil?
Lula
O Brasil não é um país racista, mas infelizmente ainda há discriminação e preconceito racial entre nós. Em 506 anos de história, mais de três séculos e meio foram de escravidão. E os escravos, após a abolição realizada há apenas 118 anos, ficaram entregues à própria sorte. Tudo isso de alguma forma ficou entranhado na nossa cultura. Somos um país no qual a convivência étnica é harmoniosa e o respeito à diversidade cultural é um exemplo. Há, no entanto, muito por fazer. Por isso no início do nosso governo criamos a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial com status de ministério, realizamos, em parceria com a sociedade civil, a 1ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial e promovemos ações afirmativas. No segundo mandato, vamos acelerar mais ainda a implementação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Alckmin
O povo brasileiro não é racista. Até por ser resultado de uma grande miscigenação de povos, é destituído de preconceitos raciais e culturais. Apesar disso, há uma enorme desigualdade. Essa desigualdade tem raízes no regime escravocrata que vigorou no Brasil por quase três séculos e foi abolido sem que se seguissem providências para a inclusão dos negros na sociedade. Por isso no Brasil grande parte dos negros tem baixa escolaridade, baixos salários, mais dificuldade de acesso aos empregos e más condições de moradia. A integração e a igualdade têm de ser alcançadas por uma luta permanente. Nesta luta, é vital a educação e o fortalecimento da identidade negra. Como governador de São Paulo, entre outras ações, criei programa que já capacitou centenas de docentes para o ensino da história e cultura afro-brasileira na rede pública estadual.
Choque retórico entre dois paradigmas
É interessante notar que os dois candidatos iniciam suas respostas com o velho lugar-comum do discurso oficial: Não, o Brasil não é um país racista. A miscigenação é prova disso, argumenta Alckimin. Nós somos exemplo de respeito à diversidade, reafirma Lula. No entanto, muito precisa ser feito no campo das relações raciais no Brasil, concluem os dois candidatos. As respostas dos dois candidatos é marcada por essa incongruência entre retórica celebratória e oficial de um país racialmente harmonioso e a emergência de um novo paradigma para entender as relações sociais. Novo paradigma este que mostra a existência de um Brasil bicolor e reivindica políticas de reparação para negros.
Geralmente esses discursos vêm separados, mas no Brasil eles coexistem na retórica dos candidatos à Presidência. De qualquer maneira, no assunto das políticas de ação afirmativa, os dois se mostram simpáticos à sua adoção e ampliação. Segundo esse artigo (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142004000100008&lng=en&nrm=iso&tlng=pt) dos antropólgos Peter Fry e Yvonne Maggie, essa mudança de perspectiva dos políticos brasileiros iniciou-se na Conferência sobre o Racismo na África do Sul e está sendo concretizada agora. Segundo esses antropólogos, a mudança de paradigma ocorreu sem maiores discussões na sociedade civil e foi de cima para baixo. O artigo linkado mostra a reação dos leitores de O Globo diante da mudança de paradigma do governo brasileiro.
Independente de consideramos a validade ou não da política de ação afirmativa, algo de positivo está se passando: as pessoas estão discutindo a questão racial no Brasil. Claro que muitas vezes os termos dos debates ainda não são os ideias, e não poucas vezes, as discussões trazem mais calor do que luz à questão. Mas enfim, o debate está começando...
Existe racismo no Brasil?
Discutir essa questão é complicada. Até porque as polarizações do debate são evidentes. Existe um Fla X Flu muito grande. Desde já antecipo que não defendo a idéia de que exista uma democracia racial no Brasil. Aliás, nem o próprio Gilberto Freyre - como lembra o antropólogo Hermano Vianna - citou, uma única vez, tal termo em Casa-grande & senzala. Muitas vezes a idéia de democracia racial se tornou uma caricatura para ser malhada. A idéia de um país edênico onde não há tensões raciais ou sociais é tão ridícula, que é quase impossível não ser contra a tal disparate.
Mas a democracia racial virou um dos termos do debate. Ou você acredita que no Brasil existe racismo, ou você acredita em democracia racial. Fica-se mais ou menos nessa dicotomia.
Somos racistas? O racismo - e isso qualquer consulta ao Houaiss pode corroborar - pressupõe a idéia de superioridade racial. Pessoas que se consideram pertencentes a uma etnia (a identidade étnica e a consciência racial são elementos importantíssimas do racismo) , e que consideram que sua etnia é superior a uma outra etnia. Geralmente é uma naturalização de uma diferença estabelecida por relações de poder. Exemplos claros podem ser encontrados na história no sul dos Estados Unidos e, de maneira ainda mais radical, no apartheid da África do Sul. Brancos e negros iam para escolas diferentes, igrejas diferentes, bebiam água em lugares diferentes. Nenhuma confraternização era encorajada. Grupos se organizavam para violentar negros (considerados inferiores). Havia linchamento e perseguição. Isso é racismo. Políticas de ação afirmativa nasceram nesse contexto.
Isso posto, se pensarmos o conceito na sua dimensão mais elementar ( a idéia de superioridade de uma etnia em relação a outra) e na sua prática institucional (os casos norte-americanos e sul-africanos) podemos chegar à conclusão que no Brasil, o racismo nos seus moldes clássicos não existe.
Mas...mas...mas...
Mas que história é essa que o racismo no Brasil não existe? Quantos de nós já ouvimos histórias de preconceito, piadas racistas, pessoas próximas declarando abertamento juízos racistas...? Certamente essas manifestações existem, mas longe da moldura clássica dos casos americanos e sul-africanos. As diferenças são evidentes. A começar pela interpenetração cultural e étnica que ocorreu no Brasil - o que é um fato - o que levou a um contato entre culturas impensável nos EUA, por exemplo. Os grandes símbolos de nossa identidade cultural são o samba (estudado brilhantemente por Hermano Vianna) e a feijoada - que são produtos de uma intensa negociação e contato entre portugueses e africanos.
Então vivemos na sociedade idílica, sem preconceito racial e numa eterna paz social? Não, de maneira nenhuma. Porque a negação da manifestação do racismo nos seus moldes clássicos não é afirmação de uma democracia racial. Acho que temos muitos problemas. Mas nossos problemas são outros. A única coisa que advogo é um diagnóstico verdadeiro de nosso quadro social - e não a adoção de paradigmas prét-a-porter erigidos em outras dinâmicas sociais - tão diferentes da nossa.
Como diria Joaquim Nabuco, a escravidão é a nódoa de nossa formação social. Boa parte de nossos problemas vêm da escravidão que deixou uma herança social e cultural das mais significativas. Uma herança ambivalente. Mas da mesma maneira que herdamos um país onde as negociações culturais são possíveis e onde há mulata é a tal, também vivemos num país extremamente violento e repleto de assimetrias.
Como lembra Roberto DaMatta(http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=105731&sid=2401971998726748832250025&k5=233D1C&uid= ), o Brasil é o país do "sabe quem está falando". Um país cartorial, onde um diploma universitário tem um status inacreditável. Um país de homens cordiais, onde o burocrata "dá um jeitinho" quando é seu amigo, e pode tornar sua vida desgraçadamente difícil quando é seu inimigo. Onde um policial militar ou um professor universitário podem exercer seu poder muito além daquilo que a lei prescreve. Onde empregadas domésticas (morenas, negras ou agaleguadas) são humilhadas por patrões que preferem viajar para Miami do que dar um aumento de salário. Um país onde existe elevador de serviço e elevador social. Nossa herança colonial viceja nesses pequenos detalhes do cotidiano. Isso é horrível. Isso é abjeto. Mas não creio que seja racismo. Não se trata, portanto, de uma questão meramente conceitual. Afinal, dependendo do diagnóstico, as política de combate serão outras. E as formas para combater esse lado extremamente negativo de nossa herança colonial pedem outras armas que aquelas usadas contra o racismo.
O que propõe o governo?
O governo propõe um Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS) e que já foi aprovado no Senado Federal. De acordo com esse Estatuto o Brasil as cotas raciais serão obrigatórias nas universidades e no serviço público. Mais: o então ministro da Educação Tarso Genro mandou ao Congresso um projeto que previa a classificação racial nas escolas. Crianças na escola primária teriam que declarar raça! Nos Estados Unidos isso não é um problema porque - lembremos - um dos componentes mais importantes do racismo é lembrar a identidade étnica todo o tempo. Você é lembrado de seu grupo étnico a cada passo que você dá. Seja pela escola que você frequenta, o hospital que você vai. Tudo segregado. Por que então colocar a raça - uma das categorias mais atrasadas já utilizadas para definir os homens - num contexto onde ela não é importante?
O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil?
O que se percebe na adoção das cotas por parte dos governantes brasileiros (tucanos e petistas) é a de mais uma vitória do imperialismo cultural norte-americano no Brasil. Sim, imperialismo cultural não é só McDonalds e Hollywood. Ou como diria Pierre Bourdieu, num excelente artigo sobre esse tema, os EUA conseguem com grande sucesso globalizar os seus problemas. O que é particular se torna universal. O que é problema doméstico passa a ser problema que deve ser combatido em todas as fronteiras. Instituições como a Fundação Ford financiam militantes da causa em universidades de muitos países, inclusive o Brasil. Militantes como Michael Hanchard (http://www.amazon.com/Orpheus-Power-Michael-George-Hanchard/dp/0691002703/sr=8-4/qid=1161467784/ref=sr_1_4/102-5904541-0225725?ie=UTF8&s=books) acreditam que o Movimento Negro americano deve ser o exemplo para o movimento negro brasileiro, como se as diñâmicas sociais fossem as mesmas.
Como falsas dicotomias nos cegam diante da realidade
O grande problema da discussão colocado pelos militantes da ação afirmativa no Brasil é que muitas vezes se coloca uma falsa dicotomia: ou você reconhece que existe racismo no Brasil, ou você está querendo encobrir a odiosa violência que nutre as relações sociais neste país. Será chamado de ideólogo da democracia racial e outros epítetos menos carinhosos.
Ora, não quero negar a violência abjeta que norteia nossas relações sociais. Só não acho que a lógica social que conduz essa violência seja a mesma que havia no Sul dos Estados Unidos. A lógica é outra e, acredito, muito provavelmente passe longe do racismo.
Vejamos algumas situações de nosso belo cotidiano.
1)Vários policiais (de várias matizes étnicas) humilham e maltratam várias "moleques" de rua, flagrados fazendo alguma coisa errada. Um dos policiais manda os meninos mergulharem no Rio Capibaribe ( o famoso rio do Recife). Um dos meninos que não sabe nadar, morre. Isso é um caso de racismo?
2)Um empresário paulista diz que vai fugir do Brasil caso um candidato nordestino, pouco educado, incapaz de acertar uma concordância verbal, sem diploma universitário, ganhar a presidência da República. Isso é racismo?
3)Um jogador de futebol é parado por policiais por dirigir uma BMW. O jogador é moreno. Os policiais também são. Isso é racismo?
Todas são situações espinhosas, onde a autoridade e as prerrogativas do "sabe quem está falando" são colocadas em evidência. Se isso é racismo -se isso mostra a retórica de superioridade de um grupo étnico sobre o outro, são outros quinhentos. Como se resolvem situações como essa? Será que o Tio Sam pode mandar algum manual pra ajudar a gente nesse tópico?
Eu acredito o Brasil precisa de políticas sociais que ajudem a colocar todos nossos irmãos brasileiros no exercício de sua cidadania plena e ativa. Essa é a única maneira de combater os desmandos de nossa herança colonial. O governo federal, por meio do ProUni, já está fazendo um trabalho admirável ao ajudar todos os brasileiros, sejam eles negros, indígenas, brancos, entrar na Universidade. A única exigência é ter estudado na escola pública. Espero que o governo siga essa linha, ao invés de adotar o Estatuto de Igualdade Racial. A racialização de nossas relações sociais seria um grande retrocesso.
UPDATE
Aqui segue na íntegra o manifesto contra o Estatuto de Igualdade Racial, assinado por vários intelectuais brasileiros
‘TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA’
“ O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da
República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira. Este princípio
encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas
(PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos
a uma decisão final no Congresso Nacional.
“O projeto de lei de cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e indígenas nas
instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta
uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço
público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para empresas
privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a
nação brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua
pele, pela ‘raça’. A história já condenou dolorosamente estas tentativas.
“Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais constituem política
compensatória para amenizar as desigualdades sociais. O argumento é conhecido: temos
um passado de escravidão que levou a população de origem africana a níveis de renda e
condições de vida precárias. O preconceito e a discriminação contribuem para que esta
situação pouco se altere. Em decorrência disso, haveria a necessidade de políticas sociais
que compensassem os que foram prejudicados no passado, ou que herdaram situações
desvantajosas. Essas políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam
porque viriam a corrigir um mal maior.
“Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis conseqüências das
cotas raciais. Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em
identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei. A
adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas
dirigidas a grupos ‘raciais’ estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e
podem até produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e
possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância. A verdade amplamente
reconhecida é que o principal caminho para o combate à exclusão social é a construção de
serviços públicos universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em
especial a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço comum
de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam o alcance do
princípio republicano da igualdade política e jurídica.
“A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de racismo, como
demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda bloquear o caminho para a
resolução real dos problemas de desigualdades.
“Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja discriminado, de
forma positiva ou negativa, pela sua cor, pelo seu sexo, sua vida íntima e sua religião; onde
todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se valorize a diversidade como um
processo vivaz e integrante do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a
palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e
pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para viver
numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de
seu caráter.
“Nos dirigimos ao Congresso Nacional, seus deputados e senadores, pedindo-lhes que
recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade
Racial) em nome da República Democrática.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006”
Adel Daher Filho - sindicalista / Adilson Mariano - vereador / Alberto Aggio - professor /
Alberto de Mello e Souza - professor / Almir da Silva Lima - jornalista / Amandio Gomes -
professor / André Campos - professor / André Côrtes de Oliveira - professor / Ana Teresa
Venancio - antropóloga / Anna Veronica Mautner - psicanalista / Antonio Carlos Jucá de
Sampaio - professor / Antonio Cícero - poeta / Antonio Marques Cardoso (Ferreirinha) -
operário / Aurélio Carlos Marques de Moura / Bernardo Kocher - professor / Bernardo Sorj
- professor / Bila Sorj - professora / Bolivar Lamounier - cientista político / Cacilda da
Silva Machado - professora / Caetano Veloso - compositor / Carlos Costa Ribeiro -
professor / Claudia Travassos - pesquisadora / Cláudia Wasserman - professora / Celia
Maria Marinho de Azevedo - historiadora / Célia Tavares - professora / Cyro Borges Jr. -
professor / Darcy Fontoura de Almeida - professor / Demétrio Magnoli - sociólogo / Dilene
Nascimento - historiadora / Domingos de Leers Guimaraens - artista visual / Dominichi
Miranda de Sá - pesquisadora / Egberto Gaspar de Moura - professor / Elvira Carvajal -
professora / Eunice R. Durham - professora / Fabiano Gontijo - professor / Fernanda
Martins - pesquisadora / Fernando Roberto de Freitas Almeida - professor / Ferreira Gullar
- poeta / Francisco Martinho - professor / George de Cerqueira Leite Zarur - professor /
Gilberto Hochman - cientista político / Gilberto Velho - professor / Gilda Portugal -
professora / Gilson Schwartz - economista / Giselda Brito - professora / Gláucia Villas
Boas - professora / Guita Debert - professora / Helena Lewin - professora / Hercidia Mara
Facuri Coelho - pró-reitora / Hugo Rogélio Suppo - professor / Icléia Thiesen -professora /
Isabel Lustosa - historiadora / João Amado - professor / João Leão Sattamini Netto -
economista / John Michael Norvell - professor / José Augusto Drummond - cientista
político / José Carlos Miranda - movimento negro / José Roberto Ferreira Militão -
advogado / José Roberto Pinto de Góes - professor / Josué Pereira da Silva - professor /
Kátia Maciel / Kenneth Rochel de Camargo Jr. - professor / Laiana Lannes de Oliveira -
professora / Lena Lavinas - professora / Lilia Moritz Schwarcz - professora/ Lucia Lippi
Oliveira - socióloga / Lúcia Schmidt - professora / Luciana da Cunha Oliveira - professora /
Luiz Alphonsus de Guimaraens - artista plástico / Luiz Fernando Almeida Pereira -
professor / Luiz Fernando Dias Duarte - professor / Luiz Werneck Vianna - professor /
Madel T. Luz - professora / Magali Romero Sá - historiadora / Manolo Florentino -
professor / Marcos Chor Maio - sociólogo / Maria Alice Resende de Carvalho - socióloga /
Maria Conceição Pinto de Góes / Maria Hermínia Tavares de Almeida - professora / Maria
Sylvia de Carvalho Franco - professora / Mariza Peirano - professora / Mirian Goldenberg -
professora / Moacyr Góes - diretor de cinema e teatro / Mônica Grin - professora / Monique
Franco - professora / Nisia Trindade Lima - socióloga / Oliveiros S. Ferreira - professor /
Paulo Kramer - professor / Peter Fry - professor / Priscilla Mouta Marques - professora /
Ronaldo Vainfas - professor / Renata da Costa Vaz - sindicalista / Renato Lessa - professor
/ Ricardo Ventura Santos - professor / Rita de Cássia Fazzi - professora / Roberto Romano -
professor / Roney Cytrynowicz - historiador / Roque Ferreira - sindicalista / Serge Goulart -
diretório nacional do PT / Sergio Danilo Pena - professor / Silvana Santiago - historiadora /
Silvia Figueiroa - historiadora / Simon Schwartzman - sociólogo / Ubiratan Iorio -
professor / Uliana Dias Campos Ferlim - professora / Vicente Palermo / Wanderley
Guilherme dos Santos - cientista político / Yvonne Maggie - professora / Zelito Vianna -
cineasta.,