domingo, maio 30, 2004
ENFIM, BRASIL.
Depois de um vôo tumultuado - saí de Nova Iorque em plena tempestade, com direito a uma turbulência histórica -, chego ao Recife. Voltar pra casa traz sentimentos ambiguos.O paladar se delicia com a boa comida, o humor melhora com a irreverência e criatividade do brasileiro, mas ainda assim, um sentimento de desajuste teima em aparecer. O nível de tolerância baixa bastante diante determinados vícios de nossa sociabilidade. No entanto, convém não ficar insistindo muito nessas críticas sob o risco de levar a pecha de esnobe, ou pior, de agente infiltrado de Bush para desestabilizar o governo Lula...:o)
No mais, estou aproveitando o tempo para dormir - ainda não me livrei totalmente do jet lag, e ler descansadamente, sem pressa nem compromisso. Próxima semana, se der coragem, vou revisar a dissertação de mestrado.
Depois de um vôo tumultuado - saí de Nova Iorque em plena tempestade, com direito a uma turbulência histórica -, chego ao Recife. Voltar pra casa traz sentimentos ambiguos.O paladar se delicia com a boa comida, o humor melhora com a irreverência e criatividade do brasileiro, mas ainda assim, um sentimento de desajuste teima em aparecer. O nível de tolerância baixa bastante diante determinados vícios de nossa sociabilidade. No entanto, convém não ficar insistindo muito nessas críticas sob o risco de levar a pecha de esnobe, ou pior, de agente infiltrado de Bush para desestabilizar o governo Lula...:o)
No mais, estou aproveitando o tempo para dormir - ainda não me livrei totalmente do jet lag, e ler descansadamente, sem pressa nem compromisso. Próxima semana, se der coragem, vou revisar a dissertação de mestrado.
quarta-feira, maio 19, 2004
FƒRIAS E LEITURAS...
Meu último post bichou. Não conseguiu ficar propriamente editado. Não sei o porquê. Era uma cópia do artigo da Constituição Brasileiro que rege os direitos civis dos cidadãos. Nele se dizia que brasileiros e estrangeiros no Brasil tinham direito à liberade, que os estrangeiros não podiam ser extraditados por crime opinião, e assim por diante. Tudo letra morta, obviamente.
Mas vamos falar de assuntos mais produtivos. Já entreguei os meus trabalhos, já depositei a minha tese e agora estou no ritmo de férias. Amanhã tem prova final dos meus alunos...mas corrigir prova não é estressante. È só trabalhoso e chato.
Férias quer dizer leituras livres. Comecei ontem o clássico Pensée de Pascal. Qual é a obsessão de Pascal: justificar racionalmente o cristianismo. Por puro senso dialético, também comecei a ler o Anti-Cristo de Nietzsche, livro em que Nietzsche usa todas suas armas para condenar o cristianismo. Confesso que tem sido um prazer raro beber na inteligência sagaz desses dois pensadores. E o melhor de tudo: poder lê-los sem ter que escrever uma resenha, um paper, uma apresentação, sem obrigação de dizer algo original ou inteligente a respeito deles. Esse é o melhor tipo de leitura.
Como vou viajar para o Brasil na segundo, e boas horas de vôo me esperam, já reservei um livro para viagem: Benjamin de Chico Buarque. Na œltima vez que viajei para os Estados Unidos, li Pequenas Criaturas de Rubem Fonseca e me deliciei. Tanto Ž que li duas vezes durante o vôo ( o vôo de Los Angeles para S‹o Paulo dura 12 horas...portanto dava atŽ para ler uma terceira vez...).
Escrevi, escrevi, escrevi e se vc espremer bem, dessa laranja palavrosa n‹o saiu suco que prestasse. Mas afinal pra que? Estou quase de férias...
Meu último post bichou. Não conseguiu ficar propriamente editado. Não sei o porquê. Era uma cópia do artigo da Constituição Brasileiro que rege os direitos civis dos cidadãos. Nele se dizia que brasileiros e estrangeiros no Brasil tinham direito à liberade, que os estrangeiros não podiam ser extraditados por crime opinião, e assim por diante. Tudo letra morta, obviamente.
Mas vamos falar de assuntos mais produtivos. Já entreguei os meus trabalhos, já depositei a minha tese e agora estou no ritmo de férias. Amanhã tem prova final dos meus alunos...mas corrigir prova não é estressante. È só trabalhoso e chato.
Férias quer dizer leituras livres. Comecei ontem o clássico Pensée de Pascal. Qual é a obsessão de Pascal: justificar racionalmente o cristianismo. Por puro senso dialético, também comecei a ler o Anti-Cristo de Nietzsche, livro em que Nietzsche usa todas suas armas para condenar o cristianismo. Confesso que tem sido um prazer raro beber na inteligência sagaz desses dois pensadores. E o melhor de tudo: poder lê-los sem ter que escrever uma resenha, um paper, uma apresentação, sem obrigação de dizer algo original ou inteligente a respeito deles. Esse é o melhor tipo de leitura.
Como vou viajar para o Brasil na segundo, e boas horas de vôo me esperam, já reservei um livro para viagem: Benjamin de Chico Buarque. Na œltima vez que viajei para os Estados Unidos, li Pequenas Criaturas de Rubem Fonseca e me deliciei. Tanto Ž que li duas vezes durante o vôo ( o vôo de Los Angeles para S‹o Paulo dura 12 horas...portanto dava atŽ para ler uma terceira vez...).
Escrevi, escrevi, escrevi e se vc espremer bem, dessa laranja palavrosa n‹o saiu suco que prestasse. Mas afinal pra que? Estou quase de férias...
sábado, maio 15, 2004
CONSTITUI�ÌO BRASILEIRA (esse post foi roubado do blog do Ram)
(n‹o vou fazer nenhum coment‡rio)
TêTULO II : Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPêTULO I: DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5¼ Todos s‹o iguais perante a lei, sem distin�‹o de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pa’s a inviolabilidade do direito ˆ vida, ˆ liberdade, ˆ igualdade, ˆ seguran�a e ˆ propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguŽm ser‡ obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sen‹o em virtude de lei;
IV - Ž livre a manifesta�‹o do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - Ž assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alŽm da indeniza�‹o por dano material, moral ou ˆ imagem;
IX - Ž livre a express‹o da atividade intelectual, art’stica, cient’fica e de comunica�‹o, independentemente de censura ou licen�a;
X - s‹o inviol‡veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeniza�‹o pelo dano material ou moral decorrente de sua viola�‹o;
LII - n‹o ser‡ concedida extradi�‹o de estrangeiro por crime pol’tico ou de opini‹o;
LIII - ninguŽm ser‡ processado nem sentenciado sen‹o pela autoridade competente;
LIV - ninguŽm ser‡ privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
(Cada um que tire suas pr—prias conclus›es)
(n‹o vou fazer nenhum coment‡rio)
TêTULO II : Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPêTULO I: DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
Art. 5¼ Todos s‹o iguais perante a lei, sem distin�‹o de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pa’s a inviolabilidade do direito ˆ vida, ˆ liberdade, ˆ igualdade, ˆ seguran�a e ˆ propriedade, nos termos seguintes:
II - ninguŽm ser‡ obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sen‹o em virtude de lei;
IV - Ž livre a manifesta�‹o do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - Ž assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, alŽm da indeniza�‹o por dano material, moral ou ˆ imagem;
IX - Ž livre a express‹o da atividade intelectual, art’stica, cient’fica e de comunica�‹o, independentemente de censura ou licen�a;
X - s‹o inviol‡veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indeniza�‹o pelo dano material ou moral decorrente de sua viola�‹o;
LII - n‹o ser‡ concedida extradi�‹o de estrangeiro por crime pol’tico ou de opini‹o;
LIII - ninguŽm ser‡ processado nem sentenciado sen‹o pela autoridade competente;
LIV - ninguŽm ser‡ privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
(Cada um que tire suas pr—prias conclus›es)
quinta-feira, maio 06, 2004
Aqui segue a introdução de minha tese de mestrado. Só para matar a curiosidade. Vamos ver quem aguenta ler até o fim.
INTRODUÇÃO
Porque a verdade, não sei se dura ou caroável, é esta: se minha geração tem por dever (ainda não sei se por vocação) uma reinterpretação eminentemente universalista dos problemas brasileiros, isso só poder á ser feito com base na interpretação nacionalizadora e regionalizadora do modernismo – a aqui, queiramos ou não, somos todos devedores do homem que chega hoje à casa-grande dos oitent´anos.[Gilberto Freyre] (Merquior As idéias 213)
Inspirada pelo Western Canon de Harold Bloom, a Revista Veja (a maior revista do Brasil em número de circulação), no ano de 1994, resolveu juntar um grupo de reconhecidos intelectuais brasileiros para eleger o “canône brasileiro”. Os dois livros considerados mais importantes foram Os Sertões de Euclides da Cunha e Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Cinco anos depois, já na imanência da virada do século, a Folha de S. Paulo, principal jornal brasileiro, decidiu fazer uma votação entre renomados intelectuais brasileiros para saber quais eram “os melhores livros brasileiros de todos os tempos”. Na categoria não-ficção, Casa-Grande & Senzala e Raízes do Brasil de Sergio Buarque de Holanda encabeçaram a lista. Já no ano 2000, o sociólogo Simon Schwarztman fez uma pesquisa informal entre diversos cientistas sociais brasileiros para descobrir quais seriam as obras mais importantes das ciências sociais brasileiras. Novamente, Casa-Grande & Senzala liderou o ranking. Apesar do caráter promocional e superficial destas listas, é imperativo notar que as três enquetes convergem para Casa-Grande & Senzala como obra fundamental do discurso cultural brasileiro. Elas servem para reforçar e evidenciar uma idéia: a de que Casa-Grande & Senzala – uma das obras aqui analisadas - está no centro do canône brasileiro. Junta a essa constatação vem uma pergunta: uma obra já tão consagrada pela crítica ainda necessita de estudos para revelar aspectos olvidados?
A resposta que tento oferecer neste trabalho é positiva: acredito que ainda é possível revisitar a obra de Gilberto Freyre e nela apreender aspectos inusitados. Deveria acrescentar que há relativamente poucos estudos de caráter monográfico sobre a obra do ensaísta pernambucano . A maioria dos estudos sobre Freyre é constituída por artigos ou capítulos de livros que geralmente tratam de sua obra de maneira bastante panorâmica e abrangente.
A bem da verdade, ainda poderia nuançar melhor a maneira como Gilberto Freyre é estudado nas ciências humanas: acredito que se estude menos a obra de Gilberto Freyre e mais o “discurso cultural” associado à sua obra. Que discurso seria esse? Seria o discurso da “democracia racial” que consiste basicamente do seguinte: as relações doces e harmoniosas entre senhores e escravos legaram ao Brasil uma sociedade plástica, sem preconceito racial e com intensa mobilidade social.
No entanto, associar a idéia de democracia racial à obra de Gilberto Freyre não deixa de ser uma meia-verdade, e o próprio Ricardo Benzaquen de Araújo, em seu estudo, aponta para essa falha (48). Trata-se de um equívoco de análise, pois aborda a tese da democracia racial como se fosse um conteúdo unívoco da obra de Gilberto Freyre e não – como deveria ser olhado – como um elemento constitutivo de um travejamento complexo, no qual está em jogo uma correlação de forças ideológicas de um largo espectro, indo das mais obscuras e mistificadoras às mais lúcidas e críticas. Daí podermos concluir que a própria análise ideológica da obra de Gilberto Freyre ganhe mais acuidade quando se atenta para o ordenamento ou a composição argumentativa de seu ensaio. Portanto nossa ênfase primordial é se voltar à obra de Gilberto Freyre, tentar entender suas especificidades formais, sua lógica interna, para atingir um entedimento mais preciso de seu pensamento.
Essa tese de mestrado está dividia em três capítulos. Num vôo de passário mostrarei as questões principais que cada capítulo suscita.
O capítulo “As ambiguidades da leitura” da tese tem dois objetivos básicos: o primeiro seria investigar a dinâmica da recepção da obra de Gilberto Freyre. Tentarei expor as diversas - e muitas vezes opostas - interpretações dadas pelos intelectuais brasileiros à obra de Gilberto Freyre. No entanto meu objetivo principal não é realizar uma “sociologia do conhecimento” ou uma análise do “campo intelectual” brasileiro a partir da recepção da obra de Freyre. O estudo dessa recepção é um ponto-de-partida de uma hipótese que pretendo desenvolver mais plenamente no segundo capítulo, que é: as ambiguidades da recepção podem ser também atribuídas às tensões do texto. Tanto o conformismo da “democracia racial” quanto o tom emancipatório do combate ao racismo podem ser encontrados no tecido compósito do ensaio de Gilberto Freyre. Obviamente, determinados momentos históricos potencializam a leitura de um aspecto desse mosaico ideológico em detrimento de outros.
O segundo objetivo do capítulo é o de construir uma estratégia de abordagem ao texto freyreano. Mapeando as diversas leituras feitas dessa obra, tento situar o tipo de mirada que devo propor para analisar esse texto. Utilizo o ensaio como chave hermenêutica dessa obra complexa. Essa chave se revelou útil por dois motivos. Primeiro possibilitou que eu não entrasse no debate, às vezes um tanto escolástico, do estatuto epistemológico de obras como as de Gilberto Freyre: seriam elas obras de arte ou de ciência? Ao escolher o gênero ensaístico como meu metro para medir sua obra, dei mais ênfase à narrativa que o texto apresenta do que a identificação de “propriedades” inerentes à literatura ou ao discurso científico. Tentei explorar algumas características narrativas do ensaio. Para isso, contrapus essa forma a outras maneiras de representar ou narrar a vida social. No primeiro capítulo comparo o ensaio com a monografia científica (utilizada pela Escola de Sociologia da Universidade de São Paulo), a fim de salientar as especificidades do ensaio como forma de representação.
Como veremos, no capítulo “As Tensões da Escrita”, o ensaio é um gênero híbrido, no qual coexistem estilo e estratos ideológicos bastante diferentes entre si. Alfonso Reyes, com muita propriedade, batizou-o de “este centauro de los géneros, donde hay de todo y cabe todo” (citado em Skirius 10). Esse seria o segundo motivo pelo qual é tão pertinente como chave hermenêutica. Ler um texto através desse prisma permite capturar seu mosaico ideológico e estilístico e fazer o balanço do mesmo. O que seria muito diferente de ser ler o mesmo texto pelo ângulo de uma disciplina específica. Nesse caso, a leitura da obra implicaria necessariamente uma seleção à luz de tal disciplina. Darei um exemplo, a partir de uma avaliação que o historiador Evaldo Cabral de Mello faz da obra dos pensadores sociais da década de 1930 no Brasil:
Na realidade, a “sociologia da formação brasileira” tinha mais de ensaística do que de sociologia, constituindo antes um esforço de introspecção coletiva do que de análise científica, à maneira da que fora levada a cabo na Espanha pela geração de 98. Aliás, o vezo entre mórbido e narcisístico de ajustar contas com o passado nacional constituiu uma moda intelectual que, da península ibérica, transmitiu-se ao Brasil e à América hispânica. . . . Mas se as obras de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado sobreviveram, isto se deveu a que levavam a marca registrada dos grandes historiadores, vale dizer, a tesão pelo concreto. ( “Raízes do Brasil e depois” 191)
Evaldo Cabral de Mello, talvez o maior historiador brasileiro da atualidade, está lendo essas obras pelo ângulo de sua disciplina. Está atrás da “marca registrada dos grandes historiadores”, a despeito desses mesmos autores também se aventurarem num gênero que Cabral de Mello considera perigoso, que é a tal ambiciosa “sociologia da formação brasileira”. Para Cabral de Mello essas obras ainda são capazes de nos transmitir algo, menos pela ambiciosa “explicação do Brasil” que propõem e mais pela “tesão do concreto” que tempera os seus trabalhos.
A mirada que proponho para ler o texto de Freyre é um pouco diferente. Ler o texto de Freyre pelo prisma ensaístico é tentar entender como se correlacionam, dentro do mesmo espaço textual, dicções e abordagens tão díspares. É questionar como coexistem essa ambiciosa “interpretação do Brasil”, almejando dar um sentido geral à “civilização mais bem sucedida dos trópicos”, juntamente com a história íntima e seu apego ao concreto, narrando a vida enfadonha dos engenhos, com seus meninos, escravos e sinhazinhas – história íntima que às vezes vai a contrapelo da pomposidade celebratória da “civilização brasileira”.
O intuito do capítulo “As tensões da escrita” é o de responder esse tipo de questão. Nesse capítulo discuto alguns trechos de Casa-Grande & Senzala que parecem seguir princípios de construção diferentes. Em algumas partes do livro sentimos uma dicção mais memorialista, resgatadora de um passado em comum. Noutras, estamos diante de uma dicção mais denunciadora, geralmente incorporando insights antropológicos, pedagógicos, ecológicos. Não raro, colocando o dedo nas feridas do sistema patriarcal. O ensaio de Gilberto Freyre transita entre o narcisístico e o mórbido, entre o ufanismo e a crítica social.
Nesse segundo capítulo constataremos que estudar o texto de Gilberto Freyre pelas lentes do ensaio permite-nos entrever uma subjetividade – que é estruturadora da composição ensaística – na fronteira entre diferentes fidelidades éticas e cognitivas, afirmando e depois questionando posições políticas, hesitando em relação a que caminho tomar na encruzilhada da memória: se o caminho da reconstrução ou exorcização do “tempo perdido”. Reabiliatar o ensaio como moldura interpretativa é captar o pensamento em movimento através de uma prosa, como a freyreana, sempre àvida por ziguezagues de angulação e reviravoltas ideológicas. É poder vislumbrar fraturas de uma consciência dividida entre a celebração de um país e um novo olhar sobre a história (olhar esse muitas vezes nada favorável ao país celebrado). Entre a fidelidade por uma classe social e a empatia pelos que estão à margem do sistema patriarcal.
Uma vez delineado o ensaio como esse espaço textual do pensamento em movimento, estamos pronto para abordar o terceiro capítulo desta tese. Nesse capítulo tento lidar com algumas intricadas relações que a prosa freyreana nos impõe: a relação entre seu saudosismo e o entusiasmo pelo Brasil moderno. Para isso analiso Sobrados e Mucambos (1936) e Nordeste (1937). Em Sobrados e Mucambos Gilberto Freyre denuncia a decadência do complexo cultural “casa-grande e senzala”. Na época em que esse complexo cultural vicejava, os opostos sociais (senhores e escravos) viviam um “antagonismo em equilíbrio” e por isso, ainda de acordo com Freyre, eram capazes de construir uma cultura original nos trópicos. Com o processo de “reeuropeização” da sociedade brasileira, estes opostos se separam, colocando em xeque o vigor e a vitalidade da cultura brasileira. Caso continuasse nesse tom de lamento do “mundo que foi perdido”, Gilberto Freyre desembocaria num processo de dissensão com o seu Brasil contemporâneo. No entanto, isso não acontece. Freyre quebra sua narrativa, para nela inserir alguns elementos que ele vislumbra como se fossem de continuidade entre o Brasil moderno e o complexo cultural “casa-grande e senzala”. O elemento principal de continuidade entre esses dois mundos seria o mulato.
Sobrados e Mucambos é um livro que consegue, como nenhum outro, apreender a hesitação de Gilberto Freyre diante daquilo que vinha se configurando como a modernidade brasileira. Se Gilberto Freyre oscila a ponto de desorientar sua narrativa em Sobrados e Mocambos, será em Nordeste que o ensaísta pernambucano encontra uma solução para seu impasse. E isso se dará através de uma estratégia retórica bastante inusitada: Em Nordeste, Gilberto Freyre faz uma crítica implacável ao latifúndio da cana-de-açúcar. Mas ao mesmo tempo celebra os valores que a cultura patriarcal brasileira criou. Cultura essa que teve como sua base e pressuposto o latifúndio – duramente criticado por Freyre. Em outras palavras, Gilberto Freyre salva os “valores” da sociedade patriarcal, e descarta a base que a criou. Esta estratégia retórica tem implicações que precisam ser estudadas – e esse é um dos objetivos do terceiro capítulo, “Dialética da Conciliação”.
Enfim, o objetivo dessa tese é o de retomar a discussão da recepção da obra de Gilberto Freyre para nos preparar a um estudo sobre as tensões de sua escrita e do gênero literário que conforma a sua composição. E uma vez isto feito, analisar como o movimento e reviravolta de seu ensaio podem nos ensinar algo sobre sua visão peculiar da modernidade brasileira.
Berkeley, maio de 2004
INTRODUÇÃO
Porque a verdade, não sei se dura ou caroável, é esta: se minha geração tem por dever (ainda não sei se por vocação) uma reinterpretação eminentemente universalista dos problemas brasileiros, isso só poder á ser feito com base na interpretação nacionalizadora e regionalizadora do modernismo – a aqui, queiramos ou não, somos todos devedores do homem que chega hoje à casa-grande dos oitent´anos.[Gilberto Freyre] (Merquior As idéias 213)
Inspirada pelo Western Canon de Harold Bloom, a Revista Veja (a maior revista do Brasil em número de circulação), no ano de 1994, resolveu juntar um grupo de reconhecidos intelectuais brasileiros para eleger o “canône brasileiro”. Os dois livros considerados mais importantes foram Os Sertões de Euclides da Cunha e Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Cinco anos depois, já na imanência da virada do século, a Folha de S. Paulo, principal jornal brasileiro, decidiu fazer uma votação entre renomados intelectuais brasileiros para saber quais eram “os melhores livros brasileiros de todos os tempos”. Na categoria não-ficção, Casa-Grande & Senzala e Raízes do Brasil de Sergio Buarque de Holanda encabeçaram a lista. Já no ano 2000, o sociólogo Simon Schwarztman fez uma pesquisa informal entre diversos cientistas sociais brasileiros para descobrir quais seriam as obras mais importantes das ciências sociais brasileiras. Novamente, Casa-Grande & Senzala liderou o ranking. Apesar do caráter promocional e superficial destas listas, é imperativo notar que as três enquetes convergem para Casa-Grande & Senzala como obra fundamental do discurso cultural brasileiro. Elas servem para reforçar e evidenciar uma idéia: a de que Casa-Grande & Senzala – uma das obras aqui analisadas - está no centro do canône brasileiro. Junta a essa constatação vem uma pergunta: uma obra já tão consagrada pela crítica ainda necessita de estudos para revelar aspectos olvidados?
A resposta que tento oferecer neste trabalho é positiva: acredito que ainda é possível revisitar a obra de Gilberto Freyre e nela apreender aspectos inusitados. Deveria acrescentar que há relativamente poucos estudos de caráter monográfico sobre a obra do ensaísta pernambucano . A maioria dos estudos sobre Freyre é constituída por artigos ou capítulos de livros que geralmente tratam de sua obra de maneira bastante panorâmica e abrangente.
A bem da verdade, ainda poderia nuançar melhor a maneira como Gilberto Freyre é estudado nas ciências humanas: acredito que se estude menos a obra de Gilberto Freyre e mais o “discurso cultural” associado à sua obra. Que discurso seria esse? Seria o discurso da “democracia racial” que consiste basicamente do seguinte: as relações doces e harmoniosas entre senhores e escravos legaram ao Brasil uma sociedade plástica, sem preconceito racial e com intensa mobilidade social.
No entanto, associar a idéia de democracia racial à obra de Gilberto Freyre não deixa de ser uma meia-verdade, e o próprio Ricardo Benzaquen de Araújo, em seu estudo, aponta para essa falha (48). Trata-se de um equívoco de análise, pois aborda a tese da democracia racial como se fosse um conteúdo unívoco da obra de Gilberto Freyre e não – como deveria ser olhado – como um elemento constitutivo de um travejamento complexo, no qual está em jogo uma correlação de forças ideológicas de um largo espectro, indo das mais obscuras e mistificadoras às mais lúcidas e críticas. Daí podermos concluir que a própria análise ideológica da obra de Gilberto Freyre ganhe mais acuidade quando se atenta para o ordenamento ou a composição argumentativa de seu ensaio. Portanto nossa ênfase primordial é se voltar à obra de Gilberto Freyre, tentar entender suas especificidades formais, sua lógica interna, para atingir um entedimento mais preciso de seu pensamento.
Essa tese de mestrado está dividia em três capítulos. Num vôo de passário mostrarei as questões principais que cada capítulo suscita.
O capítulo “As ambiguidades da leitura” da tese tem dois objetivos básicos: o primeiro seria investigar a dinâmica da recepção da obra de Gilberto Freyre. Tentarei expor as diversas - e muitas vezes opostas - interpretações dadas pelos intelectuais brasileiros à obra de Gilberto Freyre. No entanto meu objetivo principal não é realizar uma “sociologia do conhecimento” ou uma análise do “campo intelectual” brasileiro a partir da recepção da obra de Freyre. O estudo dessa recepção é um ponto-de-partida de uma hipótese que pretendo desenvolver mais plenamente no segundo capítulo, que é: as ambiguidades da recepção podem ser também atribuídas às tensões do texto. Tanto o conformismo da “democracia racial” quanto o tom emancipatório do combate ao racismo podem ser encontrados no tecido compósito do ensaio de Gilberto Freyre. Obviamente, determinados momentos históricos potencializam a leitura de um aspecto desse mosaico ideológico em detrimento de outros.
O segundo objetivo do capítulo é o de construir uma estratégia de abordagem ao texto freyreano. Mapeando as diversas leituras feitas dessa obra, tento situar o tipo de mirada que devo propor para analisar esse texto. Utilizo o ensaio como chave hermenêutica dessa obra complexa. Essa chave se revelou útil por dois motivos. Primeiro possibilitou que eu não entrasse no debate, às vezes um tanto escolástico, do estatuto epistemológico de obras como as de Gilberto Freyre: seriam elas obras de arte ou de ciência? Ao escolher o gênero ensaístico como meu metro para medir sua obra, dei mais ênfase à narrativa que o texto apresenta do que a identificação de “propriedades” inerentes à literatura ou ao discurso científico. Tentei explorar algumas características narrativas do ensaio. Para isso, contrapus essa forma a outras maneiras de representar ou narrar a vida social. No primeiro capítulo comparo o ensaio com a monografia científica (utilizada pela Escola de Sociologia da Universidade de São Paulo), a fim de salientar as especificidades do ensaio como forma de representação.
Como veremos, no capítulo “As Tensões da Escrita”, o ensaio é um gênero híbrido, no qual coexistem estilo e estratos ideológicos bastante diferentes entre si. Alfonso Reyes, com muita propriedade, batizou-o de “este centauro de los géneros, donde hay de todo y cabe todo” (citado em Skirius 10). Esse seria o segundo motivo pelo qual é tão pertinente como chave hermenêutica. Ler um texto através desse prisma permite capturar seu mosaico ideológico e estilístico e fazer o balanço do mesmo. O que seria muito diferente de ser ler o mesmo texto pelo ângulo de uma disciplina específica. Nesse caso, a leitura da obra implicaria necessariamente uma seleção à luz de tal disciplina. Darei um exemplo, a partir de uma avaliação que o historiador Evaldo Cabral de Mello faz da obra dos pensadores sociais da década de 1930 no Brasil:
Na realidade, a “sociologia da formação brasileira” tinha mais de ensaística do que de sociologia, constituindo antes um esforço de introspecção coletiva do que de análise científica, à maneira da que fora levada a cabo na Espanha pela geração de 98. Aliás, o vezo entre mórbido e narcisístico de ajustar contas com o passado nacional constituiu uma moda intelectual que, da península ibérica, transmitiu-se ao Brasil e à América hispânica. . . . Mas se as obras de Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e Caio Prado sobreviveram, isto se deveu a que levavam a marca registrada dos grandes historiadores, vale dizer, a tesão pelo concreto. ( “Raízes do Brasil e depois” 191)
Evaldo Cabral de Mello, talvez o maior historiador brasileiro da atualidade, está lendo essas obras pelo ângulo de sua disciplina. Está atrás da “marca registrada dos grandes historiadores”, a despeito desses mesmos autores também se aventurarem num gênero que Cabral de Mello considera perigoso, que é a tal ambiciosa “sociologia da formação brasileira”. Para Cabral de Mello essas obras ainda são capazes de nos transmitir algo, menos pela ambiciosa “explicação do Brasil” que propõem e mais pela “tesão do concreto” que tempera os seus trabalhos.
A mirada que proponho para ler o texto de Freyre é um pouco diferente. Ler o texto de Freyre pelo prisma ensaístico é tentar entender como se correlacionam, dentro do mesmo espaço textual, dicções e abordagens tão díspares. É questionar como coexistem essa ambiciosa “interpretação do Brasil”, almejando dar um sentido geral à “civilização mais bem sucedida dos trópicos”, juntamente com a história íntima e seu apego ao concreto, narrando a vida enfadonha dos engenhos, com seus meninos, escravos e sinhazinhas – história íntima que às vezes vai a contrapelo da pomposidade celebratória da “civilização brasileira”.
O intuito do capítulo “As tensões da escrita” é o de responder esse tipo de questão. Nesse capítulo discuto alguns trechos de Casa-Grande & Senzala que parecem seguir princípios de construção diferentes. Em algumas partes do livro sentimos uma dicção mais memorialista, resgatadora de um passado em comum. Noutras, estamos diante de uma dicção mais denunciadora, geralmente incorporando insights antropológicos, pedagógicos, ecológicos. Não raro, colocando o dedo nas feridas do sistema patriarcal. O ensaio de Gilberto Freyre transita entre o narcisístico e o mórbido, entre o ufanismo e a crítica social.
Nesse segundo capítulo constataremos que estudar o texto de Gilberto Freyre pelas lentes do ensaio permite-nos entrever uma subjetividade – que é estruturadora da composição ensaística – na fronteira entre diferentes fidelidades éticas e cognitivas, afirmando e depois questionando posições políticas, hesitando em relação a que caminho tomar na encruzilhada da memória: se o caminho da reconstrução ou exorcização do “tempo perdido”. Reabiliatar o ensaio como moldura interpretativa é captar o pensamento em movimento através de uma prosa, como a freyreana, sempre àvida por ziguezagues de angulação e reviravoltas ideológicas. É poder vislumbrar fraturas de uma consciência dividida entre a celebração de um país e um novo olhar sobre a história (olhar esse muitas vezes nada favorável ao país celebrado). Entre a fidelidade por uma classe social e a empatia pelos que estão à margem do sistema patriarcal.
Uma vez delineado o ensaio como esse espaço textual do pensamento em movimento, estamos pronto para abordar o terceiro capítulo desta tese. Nesse capítulo tento lidar com algumas intricadas relações que a prosa freyreana nos impõe: a relação entre seu saudosismo e o entusiasmo pelo Brasil moderno. Para isso analiso Sobrados e Mucambos (1936) e Nordeste (1937). Em Sobrados e Mucambos Gilberto Freyre denuncia a decadência do complexo cultural “casa-grande e senzala”. Na época em que esse complexo cultural vicejava, os opostos sociais (senhores e escravos) viviam um “antagonismo em equilíbrio” e por isso, ainda de acordo com Freyre, eram capazes de construir uma cultura original nos trópicos. Com o processo de “reeuropeização” da sociedade brasileira, estes opostos se separam, colocando em xeque o vigor e a vitalidade da cultura brasileira. Caso continuasse nesse tom de lamento do “mundo que foi perdido”, Gilberto Freyre desembocaria num processo de dissensão com o seu Brasil contemporâneo. No entanto, isso não acontece. Freyre quebra sua narrativa, para nela inserir alguns elementos que ele vislumbra como se fossem de continuidade entre o Brasil moderno e o complexo cultural “casa-grande e senzala”. O elemento principal de continuidade entre esses dois mundos seria o mulato.
Sobrados e Mucambos é um livro que consegue, como nenhum outro, apreender a hesitação de Gilberto Freyre diante daquilo que vinha se configurando como a modernidade brasileira. Se Gilberto Freyre oscila a ponto de desorientar sua narrativa em Sobrados e Mocambos, será em Nordeste que o ensaísta pernambucano encontra uma solução para seu impasse. E isso se dará através de uma estratégia retórica bastante inusitada: Em Nordeste, Gilberto Freyre faz uma crítica implacável ao latifúndio da cana-de-açúcar. Mas ao mesmo tempo celebra os valores que a cultura patriarcal brasileira criou. Cultura essa que teve como sua base e pressuposto o latifúndio – duramente criticado por Freyre. Em outras palavras, Gilberto Freyre salva os “valores” da sociedade patriarcal, e descarta a base que a criou. Esta estratégia retórica tem implicações que precisam ser estudadas – e esse é um dos objetivos do terceiro capítulo, “Dialética da Conciliação”.
Enfim, o objetivo dessa tese é o de retomar a discussão da recepção da obra de Gilberto Freyre para nos preparar a um estudo sobre as tensões de sua escrita e do gênero literário que conforma a sua composição. E uma vez isto feito, analisar como o movimento e reviravolta de seu ensaio podem nos ensinar algo sobre sua visão peculiar da modernidade brasileira.
Berkeley, maio de 2004
terça-feira, maio 04, 2004
PREPARATIVOS FINAIS...
O semestre vai acabando. E eu tentando terminar com minha dissertação de mestrado. Hoje comprei a resma de papel para imprimir a bendita dissertação. Tem que ser um papel especial, sem ácido, para ficar armazenado na biblioteca até os fins dos tempos - e obviamente, nunca ser lida por ninguém. O preço do papel foi salgado: quase cinquenta dólares.
No mais, estou contando os dias para pegar o avião para o Brasil. Se bem que ainda tenho um trabalho final para entregar - e ainda nem comecei a escrever. Essas duas próximas semanas vão ser as mais trabalhosas do semestre.
Contagem regressiva: 20 dias para embarcar para o Recife.
E amanhã é "el cinco de mayo" - dia da independência mexicana. Tem promoção no Cancún ( o melhor restaurante mexicano aqui em Berkeley): qualquer prato por cinco dólares. Uma pechincha, para padrões californianos.
O semestre vai acabando. E eu tentando terminar com minha dissertação de mestrado. Hoje comprei a resma de papel para imprimir a bendita dissertação. Tem que ser um papel especial, sem ácido, para ficar armazenado na biblioteca até os fins dos tempos - e obviamente, nunca ser lida por ninguém. O preço do papel foi salgado: quase cinquenta dólares.
No mais, estou contando os dias para pegar o avião para o Brasil. Se bem que ainda tenho um trabalho final para entregar - e ainda nem comecei a escrever. Essas duas próximas semanas vão ser as mais trabalhosas do semestre.
Contagem regressiva: 20 dias para embarcar para o Recife.
E amanhã é "el cinco de mayo" - dia da independência mexicana. Tem promoção no Cancún ( o melhor restaurante mexicano aqui em Berkeley): qualquer prato por cinco dólares. Uma pechincha, para padrões californianos.